Meu Diário
24/12/2014 00h59
...É QUESTÃO DE GÊNERO

            Combinei sair hoje à noite para jantar com meu filho e segunda esposa, e aproveitar e tratar dos documentos necessários para o divórcio. No início a minha intenção era jantarmos na casa dela, por um jantar promovido por ela. Podia aproveitar e fazer um momento de reflexão espiritual como um “Evangelho no Lar”. Mas ela entendeu a minha sugestão de “jantar com eles” numa saída para um restaurante. Não fiz qualquer objeção, também não disse qual era minha intenção original. Talvez ela quisesse ficar longe do trabalho na cozinha nesta noite. Disse também que tinha colocado o convite que eu havia dirigido para ela para o nosso filho, ressaltando que se ele não quisesse, ela também não iria para esse jantar. Mas ele não se opôs.

            Cheguei na hora prevista e aguardei um pouco sentado no sofá enquanto eles se preparavam para sair. Notei que a casa estava impecável, na limpeza, na arrumação, no bom gosto. Reflete o esforço que ela faz para manter esse padrão numa casa grande na qual ela faz tudo sozinha, e ainda por cima com um cão e um papagaio para cuidar. Antes de sair o meu filho me deu um livro dizendo que eu iria gostar. Um livro espiritual sobre a reencarnação.

            No caminho sugeri irmos jantar no Midway. Eles não fizeram objeções. Ainda no caminho sugeri passarmos antes pelo meu apartamento para eles conhecerem onde eu moro. Meu filho foi contrário, mas com as argumentações favoráveis da mãe, que não iríamos demorar, que não tinha ninguém no apartamento, que eu sempre estava querendo mostrar pra ele onde eu morava, ele terminou aceitando.

            Ao passar pela avenida da Praia onde moro, em frente ao Shopping do Artesanato onde tenho duas lojas, ela comentou que o prédio não estava funcionando bem, que tinha ido lá com um primo nosso (nós somos primos em primeiro grau) e tinha visto pouca gente, poucas lojas abertas. Confirmei e disse que mantinha as lojas até essa data pagando os encargos e sem nenhum lucro.  

            Entramos no meu apartamento e mostrei todos os ambientes e disse da condição que os adquiri. Comentei da ótima localização em frente a praia, com um belo visual, mas com o problema da maresia que ataca todos os móveis e eletrodomésticos. Ela notou nos retratos dos meus filhos na parede que o do nosso filho estava inclinado e tentou consertar. Falei que era o prego que sustenta a presilha que foi alterado na loja que tiramos os retratos e ficou daquela forma. Mostrei o visual do apartamento que reformei, que era ótima localização para assistir os fogos do final do ano. Ela brincou com o nosso filho, que ele devia vir passar as férias comigo, que ele ficaria livre dos trabalhos de casa, como tirar lixo e cuidar do cão. Ele rejeitou a proposta sorrindo, encarando como uma brincadeira.

            Voltamos para o carro e chegamos ao Midway. Escolhemos jantar no Restaurante Camarões. Enquanto esperávamos os pratos iniciamos nossa conversa. Ela me perguntou se eu estava feliz. Respondi que sim, não no que eu queria, mas no que eu podia. Perguntou se eu encontrara a mulher ideal, que não sofresse com o meu comportamento. Disse que não e ela retrucou que eu jamais iria encontrar essa mulher. Que isso era uma questão de gênero, que está em toda mulher querer somente para si o seu homem. Até mesmo nas culturas orientais onde é permitido o harém, aquela odalisca predileta é atacada pelas outras. Eu disse que essa questão de gênero eu reconheço, está representado pelos instintos que sustentam o egoísmo de querer somente para si a posse do companheiro. Mas eu procuro aplicar os fundamentos espirituais do Amor Incondicional em busca da Família Universal que construirá o Reino de Deus, assim como Jesus ensinou. Sei que isso não é impossível, pois acredito que eu tenha alcançado esse estágio, eu matei o meu machismo inerente ao amor exclusivo do egoísmo e posso tolerar e desenvolver amor pelos namorados que minhas companheiras achem conveniente ter. Ela disse que eu poderia até ser assim, mas que eu não iria encontrar nenhuma mulher que conseguisse essa façanha. Até mesmo a primeira esposa que eu coloco como exemplo de uma companheira que desenvolveu uma paixão por terceiros e que eu tolerei, ela não consegue até hoje digerir o meu comportamento e tem certeza que ela mantém os seus ressentimentos. O meu silêncio confirmou a sua opinião. Disse que as pessoas que hoje estão tentando viver ao meu lado sabendo desse meu comportamento, todas estão se iludindo ou esperando uma oportunidade de “chutar o balde”, que eu não iria encontrar a fraternidade como eu quero dentro desses relacionamentos. Eu disse que até o momento ela está com a razão e disse o dia em que ambas estiveram juntas em um encontro na casa do meu irmão e foi um desastre. Apesar de não ter ocorrido agressões escandalosas, mas o nível de hostilidade implícita foi altíssimo o que impede um novo encontro até o momento atual. Mas eu continuo com a esperança que o egoísmo seja vencido pelo Amor Incondicional, afinal esta é a maior força do Universo e que representa a força e sabedoria do próprio Deus. Ela fez um muxoxo de quem diz “não acredito nessas balelas” e mudamos o assunto.

            Perguntei pelos seus namorados, se houve algum, se tem algum. Ela disse que não, que não é mulher de ficar e que não iria fazer o que criticava, de viajar com uma pessoa sabendo que ele tinha mulher em casa. Não quis replicar que isso acontecia comigo, pois ela não queria viajar comigo e como já vivíamos como amigos dentro de casa, não via inconveniente em convidar uma amiga para ir comigo.

            Abandonamos esse assunto afetivo. Disse dos documentos que estava precisando para efetivar o divórcio e dos bens que devíamos citar para a oficialização do proprietário. Ela disse que já estava com um advogado e que na citação isso seria resolvido. Não coloquei o fato de que nós já havíamos dividido os bens há mais de 10 anos e que não haveria dificuldades em fazer isso, pois poderia transformar o jantar em uma arena de discussão, fato que eu não queria, pois a intenção era de aproveitar o clima natalino para esse primeiro encontro de nós três. Nosso filho se mantinha calado durante toda a nossa conversa. Depois dessa colocação dela de que já estava com advogado e eu não repliquei sobre os acordos que nós havíamos feito no passado, houve um momento de silêncio onde aparentemente ninguém tinha o que falar. Notei que ela passou a se comunicar com nosso filho através de gestos, “dizendo” que o ambiente não estava bom, que ele estava constrangido. Ele fazia sinais com a face que era isso mesmo. Ela jogava um olhar de piedade sobre ele. Acredito que isso seja o nível de comunicação no cotidiano que ela passa para ele, mesmo que ela não perceba, que me afasta afetivamente do nosso filho.

            A comida chegou e nossa atenção se voltou para os dois pratos que pedimos com a ajuda dela. Dividimos para que todos provassem de tudo. Conversamos amenidades de forma educada e pedimos a conta.

            Paramos na livraria para comprar um livro de presente para nosso filho, apesar dele ter dito que não queria. Mas como ela também gosta de livros, não ofereceu resistência. Escolhi quatro livros para mim e ofereci para eles escolherem o que desejassem. Nenhum aceitou. Fui para o caixa pagar os meus livros e logo depois ela chegou com um livro para aproveitar o meu momento no caixa. Era um livro de poesias de Mário Quintana que ela fez questão de passar o cartão dela.

            Voltamos para casa. Esperei um pouco enquanto ela encontrava os documentos para me entregar uma cópia. Entrei na cozinha para tomar água e acariciar o nosso cão, que agora estava doente, sem animo para responder aos meus afagos.

            Recebi os documentos, dei um até logo a ela, uma abraço em nosso filho, dizendo um “eu te amo” ao me despedir.

            Agora que acabo de digitar essas lembranças, vem à mente o porquê eu também não abracei ela... será que aquele laço que eu falei há poucos dias terminou sendo rompido definitivamente? Mas não cabe nenhum abraço? Isso é incompatível com o meu Amor Incondicional. Mesmo que eu fosse rechaçado eu teria que ter tentado lhe dar um abraço fraterno. Mas, talvez no fundo do meu inconsciente eu tenha agido assim para respeitar a forte questão de gênero que existe dentro dela e que sufoca qualquer mostra de espiritualidade superior que ela possui.

            Continuarei esperando pelo tempo de Deus, afinal foi Ele que proporcionou o nosso encontro e de ter vivido com ela tantas experiências, ela que foi uma das minhas mais fortes paixões. Talvez ainda tenhamos muito que aprender um com o outro, mesmo morando em casas diferentes, pois a convivência ficou definitivamente incompatível.    


Publicado por Sióstio de Lapa em 24/12/2014 às 00h59


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr