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HONORÁRIO EXAGERADO
Cheguei no município do interior como sempre faço duas vezes por semana, para cobrir as atividades médicas do único Hospital psiquiátrico da cidade. Logo que cheguei recebi o telefonema de uma colega pedindo para atender uma senhora idosa cujo filho de 40 anos acabara de sofrer um acidente seriíssimo e estava em coma no Hospital de urgências da capital, sem chances técnicas de voltar para casa com vida. Ainda acrescentou que eu podia ir fazer esse trabalho extra, pois eu poderia cobrar os honorários, naturalmente. Confirmei e disse que logo que estivesse liberado de meu compromisso no Hospital, iria à casa da interessada.
Dessa forma, por volta das 16 horas, cheguei na casa da referida senhora. Encontrei a família em estado de choque. Todos calados, sentados na sala, me cumprimentaram monossilabicamente, sem qualquer manifestação de alegria. Fui com a senhora a um local reservado e verifiquei que ela já estava devidamente medicada para o seu estado mental. Fiz apenas a prescrição de um complexo vitamínico para compensar a falta de apetite que lhe acometera. Enquanto fazia a receita o outro filho da senhora perguntou o que fazer com os dois filhos do irmão acidentado, um casal de 14 e 16 anos que continuavam a acreditar que o pai voltaria vivo, mesmo sabendo de toda explicação técnica que garantia o contrário. Disse que poderia mandar os dois entrarem que eu conversaria com eles na presença da avó. Quando os dois chegaram perguntei se eles estavam realmente a par da situação que o pai enfrentava. Eles disseram que sim, mas recusavam perder um milímetro que fosse da esperança, pois era isso apenas o que o pai tinha.
Fiquei impressionado com a firmeza de suas colocações e após meditar um pouquinho falei:
- Vocês estão absolutamente corretos. Por mais que não tenhamos no momento qualquer recurso técnico para reverter os danos e todo conhecimento científico aponte para uma fatalidade, existem forças que desconhecemos no universo e um poder superior que emana do Criador para suas criaturas. Não podemos ver, pesar ou medir, mas podemos sentir. E agora mesmo, estou sentindo a presença dessa força em vocês. Para sua avó já prescrevi o remédio que ela precisava. Para vocês não existem remédios na farmácia que lhes sejam úteis, mas existe um outro tipo de remédio bem mais adequado para o momento: a oração. Caso vocês permitam, gostaria de agora mesmo nos juntarmos numa oração de súplica.
- Claro doutor, disse enfaticamente o mais velho, nós é que agradecemos.
Fizemos um pequeno círculo abraçados uns com os outros e conduzi a oração que foi mais ou menos assim:
- Divino Pai celestial. Pedimos clemência para a situação de P. que atravessa extrema dificuldade no leito do Hospital. Sabemos que nossos recursos técnicos e científicos não são mais suficientes para preservar sua vida e que somente com a Sua divina intercessão ele pode voltar para casa. Veja, Pai, quantos sentimentos amorosos, de rogativa por sua sorte são evocados neste momento. Certamente era uma pessoa bondosa, era um bom irmão dentro da comunidade. Por favor, retarde o seu retorno à Vossa presença e nos deixe desfrutar mais um pouco do convívio com ele. Mas, Pai, se achas que é realmente necessário ele ir agora para perto de Ti, enchei de força, tolerância e compreensão os nossos corações para que possamos suportar os longos dias da sua ausência. Que seja feita a Vossa vontade.
Enquanto orávamos de cabeças baixas, vi os pingos das lágrimas caírem de forma aleatória de cada rosto, inclusive o meu.
Ao me despedir na saída, perguntaram quanto era a consulta e eu disse que iria cobrar um preço que talvez eles não pudessem me pagar. Disse que eu sabia do poder de Deus, que é infinito e que pode ser mobilizado de acordo com o amor que temos no coração e a quantidade de fé que integra nossa razão. Portanto, o meu pagamento seria um abraço recebido do seu pai quando ele voltasse recuperado para casa.
Senti que os jovens ficaram entusiasmados com o tipo de moeda que eu estava cobrando deles e falaram com um brilho no olhar que com certeza iriam me pagar.
Despedi-me escondendo deles meus olhos úmidos, pois inocentemente eles aceitaram com alegria a cobrança de honorário tão alto quanto jamais eu pensei fazer.
Mas, quem sabe o que o futuro nos reserva? Apenas sei que nunca na minha vida profissional desejei tanto receber meus honorários.


Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 28/12/2011
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