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O AMANTE ESPIRITUAL
Esse título deveria ser considerado uma redundância. Todo amante, aquele que pratica o Amor em sua magnificência, deveria ter por natureza uma ação espiritual. No nosso mundo carregado de interesses materiais, o lado espiritual é bastante esquecido, as vezes menosprezado. No entanto temos a grata satisfação de ver exemplos de que essa situação deve mudar. É um desses  exemplos que passo agora a descrever.
Getúlio era uma pessoa que perseguia sempre o lado espiritual do amor. Ele vivia em nosso mundo real e da mesma forma como tantos, ele também era submetido a pressão material em todos os ângulos, principalmente no carnal, no sexual, quando o assunto era amor. Nos seus relacionamentos procurava sempre privilegiar o aspecto espiritual, mas sempre entrava o lado carnal, o desejo e a satisfação do prazer sexual. Isso lhe deixava sempre com a dúvida, de qual tinha uma maior importância para a motivação do seu comportamento. Ele acreditava que prevalecia o lado espiritual, mas todos ao seu redor que viam a situação somente acreditavam que o motor principal era o carnal, o material, e não o espiritual. Getúlio ficava confuso, a sua certeza era abalada, pois como poderia tantos estar errados e somente ele certo? Mas, no entanto, algo lá no fundo da sua consciência continuava a afirmar que ele estava certo, e que o aspecto sexual emergia da relação espiritual e poderia ser consumada sem qualquer preconceito, mas de nenhuma forma poderia ir de encontro aos valores espirituais se esses fossem ameaçados.
Mas chegou o dia em que Getúlio teve a oportunidade de confirmar o que era uma grande interrogação dentro de sua cabeça.
Ele conhecera Dália há algum tempo e desenvolveu por ela o amor espiritual que era uma constante nos seus relacionamentos. O que foi diferente dessa vez? Sempre que o relacionamento era com uma mulher bonita como Dália, o desejo sexual ia num crescendo, tomava forma e começava a avaliação do “terreno” para ver a possibilidade do encontro carnal sem ferir os princípios espirituais. Mas com Dália não aconteceu isso. O amor espiritual ia crescendo, mas não surgia o contraponto sexual. Isso não deixou Getúlio preocupado, mas sim curioso. Como era já tão grande o seu amor por Dália e não sentir o desejo sexual? Será que, se houvesse a oportunidade de uma maior proximidade entre os dois, surgiria uma explosão de desejos sexuais represados?
Enfim surgiu o dia que essa resposta iria ser dada. Getúlio e Dália, por circunstâncias dos seus trabalhos, ficaram a sós em uma pequena sala. Seus rostos estavam próximos e dava para sentir o hálito de um e outro. Eles se aproximaram e se abraçaram como sempre faziam quando se encontravam, mas geralmente em público. Dessa vez estavam sozinhos. Os dois sentiram o peso da circunstância, da situação. Getúlio sentia como das outras vezes o corpo de Dália de encontro ao seu, como acontecia nos seus freqüentes abraços fraternos, mas agora na sua mente vinha também o pensamento de que estavam sozinhos. Que algo mais profundo poderia acontecer. Ele poderia tomar a iniciativa. Esses pensamentos fizeram seu pênis intumescer e o volume já poderia pressionar a amiga. Mas ele percebeu que esse evento fisiológico estava dissociado do sentimento. Não era a volúpia sexual que lhe invadia a mente. Continuava a sentir ondas de amor fraterno por Dália, seu coração vibrava em uníssono com o dela. Talvez ela tivesse percebido o seu volume, talvez ela tivesse também fisiologicamente preparada para o ato sexual, mas se percebia no seu semblante que a vibração era semelhante a de Getúlio. O amor sem conotação sexual. Era uma perfeita dissociação fisiológica. O corpo preparado para o ato sexual e a mente sintonizada com um amor abstrato. Naquele momento em que a alma de ambos parecia que se fundiam no ambiente estreito daquela sala, Dália perguntou:
- Tu me amas?
Getúlio recebeu a pergunta com a maior naturalidade, como se aquilo fosse o que ele já esperava e respondeu sem titubear:
- Sim.
- Há quanto tempo? Voltou a interrogar Dália.
Dessa vez Getúlio respondeu com ar enigmático.
- Antes de nós existirmos o nosso amor já existia. Ele navega pelos séculos, pelos milênios, pelos astros, pelos horizontes do infinito. Ele se aproxima do Criador e vem repousar em nossos corações. Ele não pede, não exige, simplesmente se doa.
O olhar de Dália estava sereno, fitando os olhos de Getúlio e vice-versa e era como se ambos fitassem os portais do infinito. A carne era secundária. Poderia toda a fisiologia estar funcionando em caráter autonômico, mas as mentes de ambos estavam viajando, cavalgando em seus corações pelo universo estrelado. O toque do corpo servia apenas para lembrar que ambos estavam presos a terra, num corpo pesado que não podia acompanhar os seus sentimentos. O tempo não importava mais para ambos. Um minuto dava a sensação de preencher um século. Quem entrasse naquela sala e visse os dois abraçados, jamais iria pensar na dimensão do que eles estavam sentindo. Era muito pequena a explicação carnal, sexual que eles, os curiosos, poderiam pensar. Caso eles percebessem a dimensão do prazer experimentada pelos amantes espirituais na esfera dos sentimentos, talvez ficassem muito mais escandalizados com a tremenda força e carga de prazer que eles recebiam e doavam num ciclo ininterrupto e contagiante.
Nunca mais Getúlio teve dúvidas. Ele era um amante espiritual e Dália era a sua grande parceira. E todas as outras que o amor espiritual permitia o acesso carnal não as deixavam numa posição superior, pelo contrário, a viagem que tivera com Dália no campo exclusivamente abstrato, transcendental, era muitíssimo superior a qualquer experiência que já tivera, até mesmo a mais bela experiência sexual.
(feito em 12-07-07)
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 28/12/2011
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