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BOM DIA, MEU AMOR!
Como a vida tem mistérios que por ignorância ou falta de atenção não percebemos! Ás vezes um mal traz um bem, um acidente que nos traz dor nos livra de outro que poderia nos causar a morte, e assim por diante. Cheguei a sofrer uma dessas alterações dramáticas do destino, que até hoje não sei classificar se é bom ou ruim. Estou dividido entre a razão e o coração: o primeiro diz que é ruim, o segundo diz que é bom!
Sou casado com uma mulher que amo e sinto a recíproca ser verdadeira. Mas, infelizmente para ela, a qualidade do meu amor não se prende à exclusividade que ela tanto deseja e a sociedade apóia. Eu não consigo deixar de amar a quem meu coração pede. Isso a levou a acumular frustrações, desgostos, ressentimentos, raiva. O seu hábito de me cumprimentar todos os dias com um sorriso nos lábios em um carinhoso “Bom dia, meu amor!” Isso era o gostoso café da manhã da minha alma, e deixou de acontecer. Ela tornou-se fria e dura como uma pedra, mas o meu amor por ela jamais morreu ou mesmo diminuiu. Talvez eu sofresse mais do que ela com toda essa transformação que senti em seu comportamento, na sua forma de me tratar. Mas eu não poderia deixar de ser quem eu sou e ela também não poderia deixar de ser quem é. Para viabilizar nossa convivência, aceitamos continuar juntos como amigos, sem a possibilidade de fazermos sexo, o seu coração não admitia mais. Além de hora programada para chegar em casa, de não fazer mais companhia nas minha viagens à trabalho. Tudo isso eu tolerava, mas ela não tolerava tudo. A primeira gota que transbordou a sua paciência, me expulsou de casa de forma sumária, como um criminoso condenado e cumprindo pena. Eu não poderia mais ter acesso a sua casa, afagar o nosso filho, afagar o nosso cachorro, folhear os meus livros, assistir os meus filmes, ouvir minhas músicas... nada! Fui embora apenas com o meu carro, com as roupas do cotidiano que ele pôde carregar. Não deu nem recebeu mais nenhum telefonema meu; não queria que seus amigos ou sua família tivesse contato comigo. Nossos retratos em comum foram rasgados, picados para ser mais preciso, os que se salvaram ela devolveu com a sua imagem retirada à tesoura. Enfim, ela construiu um buraco negro e me jogou dentro. Eu não existia para ela!
O tempo passou e usei toda minha paciência e tolerância para nunca brigar com ela. Nunca deixei que nada viesse a arranhar o amor que tenho por ela. Pedia a Deus, aos ancestrais, aos amparadores espirituais que tivessem compaixão da nossa situação e harmonizasse os nossos corações. Talvez em resposta a essas preces um dia fui chamado à sua casa,, pois ela havia perguntado por mim e queria me ver. Fiquei surpreso. Seria alguma armadilha que ela estava preparando para mim? Seria a tão esperada reconciliação, ela teria reconhecido a dureza de suas ações e queria retomar nossa amizade? Deixei o temor de lado e fui correndo à sua casa para, pelo menos olhar naqueles olhos que deixaram pela primeira vez ver a beleza da sua alma.
Quando eu entrei ela estava na sala, lendo como gostava de fazer e sem nenhum constrangimento ou aspecto de raiva apenas disse naturalmente:
- Oi querido, está tudo bem?
Tamanha naturalidade me pegou de surpresa. Sua mãe e irmã que estavam presentes no momento ficaram contentes em ver nossa harmonização, afinal elas nunca quiseram a nossa separação. Mas ao mesmo tempo tristes por pressentir que algo ruim pairava no ar. Ela estava esquecendo muita coisa e com muita freqüência e por isso já haviam marcado uma consulta para o dia seguinte. Fiquei para dormir como se nada de separação houvesse entre nós. No dia seguinte ao acordar veio a maior surpresa:
- Bom dia, meu amor!
Era sua voz vibrante e sonora como um coral de anjos a declarar o seu eterno amor por mim. Meus olhos encheram de lágrimas de felicidade. Disfarcei para ela não notar. Fomos para a consulta marcada e aquele problema do esquecimento que sua família comentou, eu suspeitava que era a causa de sua mudança repentina. Foi o que aconteceu. O médico disse que ela estava apresentando os sintomas precoces do Mal de Alzheimer, uma doença degenerativa que ataca o cérebro e a primeira função que destrói é a memória. O paciente começa por esquecer dos fatos recentes o que atrapalha a vida cotidiana. Evolui inexoravelmente até o estágio final onde nada mais é gravado na memória e o que existe gravado não pode mais ser recuperado. Ela recebeu a  notícia com grande dor e sofrimento, mas como se fosse para provar o acerto do diagnóstico, logo que saiu do consultório a alegria voltou ao seu rosto. A informação que recebera da doença não havia sido gravado e a primeira coisa que lhe chamou a atenção a apagou de sua memória. Voltei com ela para casa com meu coração dividido. Contente porque recuperei a mulher que amo, que sinto em seus olhos a mesma intensidade do amor que existia na primeira vez que a vi; triste porque sei que a doença vai avançar e lá na frente também vai apagar a memória deste amor que hoje ilumina o seu sorriso.
Assim estou vivendo meus últimos dias de felicidade. Saio de casa para encontrar as minhas diversas namoradas, chego a ficar fora de casa até um ou dois dias, e sempre que chego encontro a minha amada com um sorriso radiante no rosto e um olhar cheio de amor. Não pergunta onde estive ou com quem. Não tem medo de ninguém, não tem raiva de mim. Nos abraçamos e beijamos cheios de amor um para o outro.
Sei que qualquer dia vou chegar em casa e não vou mais ser reconhecido. Preciso urgentemente tirar novas fotos juntos, abraçados, com beijos, afagos, para lhe mostrar que eu sou, o amante de sua vida.
Sei que quando a doença avançar mais ainda ela me confundirá com seu pai e eu mudarei a qualidade do meu amor, de carnal para filial. Cuidarei das suas fraldas, banharei o seu corpo, pentearei os seus cabelos e cantarei cantigas de ninar para ela dormir.
Ela merecerá, pelo sofrimento que a fiz passar, que eu seja o único a sofrer nessa fase, a cuidar do corpo que então encarcera a alma que amo!
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 05/02/2012
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