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RASTROS PERFUMADOS
Sempre tive um forte componente romântico em meu coração. Na adolescência isso ficou mais intenso e procurava descobrir a melhor forma de encontrar a mulher de meus sonhos, aquela que seria minha companheira por toda vida, que não tivesse medo de entrar em qualquer fogueira ao meu lado, que sintonizasse com meu coração e se transformasse na carne de minha carne, que sentisse o prazer que eu sentisse em qualquer situação que eu vivenciasse, com ou sem ela. Ouvia a música romântica dos meus cantores preferidos e procurava colocar uma face naquela diva que surgia das brumas melodiosas das canções. As vezes coincidia com alguma amiga, uma colega da escola, chegava a me aproximar, namorava, me apaixonava até, mas sempre havia algum tipo de fiasco que descobria a falta de sintonia em algum aspecto e o castelo romântico logo desabava. Mas o meu sonho persistia de encontrar a mulher que meu coração esperava.
Um dia chegou em minha cidade um circo com diversas atrações. Entre elas tinha a tenda de uma cigana que propagandeava sua bola mágica capaz de descobrir o futuro de qualquer mortal. Fiquei muito interessado, pois a minha procura pela mulher dos sonhos estava no auge, meu coração ansioso procurava e eu não tinha pistas de quem seria. Resolvi visitar a tal cigana. Fui recebido com cortesia e ela pediu para que eu sentasse a sua frente na mesa sobre a qual tinha a famosa bola. Depois que eu disse do meu interesse, de encontrar a mulher dos meus sonhos, mas que não sabia como e onde procurar, ela se concentrou e fez gestos místicos sobre o globo límpido e luminoso. Interessante é que a luz dentro da tenda era fraca, mas o globo parece que tinha uma luz própria, mais forte do que a luz ao redor. Notei que o rosto da cigana ficava mais tenso, sua vista procurava encontrar o que o globo mostrava. Tive a impressão que o globo se tornara leitoso, que umas imagens como nuvens pareciam circular por seu interior na forma de nebulosas que desenhavam formas. Eu não conseguia distinguir nada! Tudo para mim era leitoso e informe. Mas para a cigana parecia ter algum significado. Ela movia sua mão como se tivesse no leme de algum veículo que ela dirigia para algum lugar. Seus dedos longos e esqueléticos pareciam pentear as nuvens que se formavam dentro do globo. De repente me assustei com a voz repentina, forte, tonitruante que parecia anunciar um diagnóstico com toda precisão científica:
- Encontrei! Tou vendo! Aí está! Rastros! Rastros... perfumados!
- Rastros perfumados?! O que isso quer dizer? Eu não tou vendo nada!
Tentei argumentar ainda que eu não havia visto nada na bola, que isso não significava nada. Mas a cigana estava impassível. Dava sinais que havia terminado o seu trabalho. Olhou fundo nos meus olhos de incrédulo e disse só uma vez:
- Voce não tem olhos para ver, e parece que também não tem ouvidos para ouvir! Tem dinheiro para me pagar?
Coloquei sobre a mesa as notas que a tabuleta lá fora indicava e sai um tanto aborrecido. Sentia que tinha perdido meu dinheiro para uma embusteira.
Os dias passavam e mesmo não acreditando naquela experiência com a cigana, ela não me saia da cabeça. E se ela tivesse um pingo de razão? Mesmo que fosse um pinguinho, um mísero pinguinho? Isso poderia me trazer alguma luz na minha busca, já que eu não tinha encontrado até aquela altura nenhuma outra alternativa. Eu já estava com 33 anos, já era tempo desse encontro acontecer.
Sem que eu notasse passei a observar com mais interesse os pés e calçados de minhas amigas, namoradas. Apurava o meu olfato e procurava ver se sentia algum aroma. Chegava a ser ousado em alguns momentos de intimidade, beijava os pés de minhas namoradas, quando sozinho, cheirava seus sapatos. Algumas vezes eu era flagrado e já estava sendo acusado por algumas pessoas de fetichista, de ter prazer só com os sapatos de minhas amantes, pois depois que os beijava eu abandonava a sua dona. Observei que essa fama não era nada legal para mim, mas eu não poderia dizer o real motivo desse comportamento, iria passar por um ridículo maior. Fetichistas pelo menos existem milhões pelo mundo afora. Uma pessoa que procura por rastros perfumados só poderia ter um: eu!  
Resolvi me conter, controlar essa curiosidade, afinal a cigana devia ser uma embusteira mesmo e eu estava fazendo papel de bobo. O tempo passava indiferente as minhas preocupações e trouxe consigo a oportunidade de conhecer uma garota, Maria Eulália, a Lalinha para os amigos. Não era uma garota especial, poderia até dizer que ela estava abaixo do padrão normal de beleza que considerávamos em nosso grupo de amigos. No aspecto psicológico também não tinha nada de especial, era mais apagada que acesa. Somente seus olhos tinha algo de diferente que eu não conseguia explicar e que me atraia. Mas como não tinha o apelo físico, eu não encontrava a beleza que despertasse o meu desejo e assim não tinha o interesse de experimentar namorar com ela. Deixava aquele olhar enigmático dentro do departamento psicológico das coisas interessantes, mas sem utilidade.
Então tudo aconteceu naquela tarde. Marcamos uma reunião festiva dos amigos na casa do Luis para comemorar seu níver. Nada de especial, era só um motivo dos amigos se encontrarem, bebericarem e jogarem conversa fora. De repente alguém se preocupou de fazer a checagem, verificar se faltava alguém dos que foram convidados para cantar os parabéns e cortar o bolo. Daí então que se percebeu a falta de Lalinha. Dos convidados ela era a única que ainda não chegara. Mas ela confirmou que vinha, então ela virá, disse alguém. Nunca vi ninguém tão comprometida com o que promete como Lalinha. Veja só, ela prometeu vender o carro dela para a Dolores e logo em seguida alguém ofereceu duas vezes mais o que ela tinha acertado, mesmo assim ela não usou nenhum artifício, assumiu a perda do ganho extra que teria se tivesse feito a venda a outra pessoa e garantiu sua palavra. Poucas pessoas fazem isso, reforçou o informante.
Uma outra voz, feminina, também se fez ouvir: é verdade, Lalinha é especial. Zizinho namorava com ela, mas quando me conheceu sentiu que seu coração se voltava todo para o meu. Lalinha percebeu que nós estávamos encantados um com o outro e foi ela mesma que fez com que Zizinho reconhecesse o sentimento que despertara por mim e deu toda a força para que ele namorasse comigo. Ela dizia que amava tanto o Zizinho, que o seu desejo era que ele fosse feliz, mesmo que essa felicidade fosse ao lado de outra pessoa!
Elevou-se outra voz, também feminina: essa Lalinha é realmente uma pessoa fantástica. Imaginem que Selma chegou para mim e comentou como a Lalinha era minha amiga. Fiquei surpresa, pois eu mal conheço a Lalinha, há pouco tempo que ela chegou no nosso grupo, e ela fica tão isolada, pouco conversa, pouco se integra em nossas brincadeiras... não sei como ela confirmou que viria a esse aniversário! Então Selma disse que estava numa reunião de fofoca com várias moças e rapazes, onde eu não estava, e todos começaram a me criticar, colocar aspectos negativos da minha vida e do meu comportamento. A cada citação a turma caia na gargalhada, o chafurdo na minha vida tava grande, até a própria Selma ria às bandeiras desfraldadas. Logo a voz de Lalinha se fez audível e com uma firmeza inesperada pediu para todos lembrarem de como eu perdi um emprego por ter informado a um colega que foi aprovado do concurso de uma única vaga do qual eu também concorri e fiquei no segundo lugar; de como chegou atrasada no trabalho e foi repreendida por ter parado no caminho e ajudado o colega que tava com o seu pneu furado... Lalinha ficou citando várias outras ações positivas que eu fiz e que nem mesmo eu lembrava mais que fizera. Diz Selma que todos naquela algazarra ficaram emudecidos e ela mesma, a Selma, ficou até envergonhada por ter participado do riso.
A dona da casa onde estávamos reunidos, dona Marieta, que ouvia toda nossa conversa, soltou de longe a sua opinião: pessoa como essa deixa no caminho por onde passa um rastro de perfume que banha a alma de todos que tem a sorte de dividir o ambiente com ela.  
Caiu a ficha na minha consciência! De repente percebi qual era o significado dos rastros perfumados. Nesse momento a campainha tocou. Fiz questão de correr na frente de qualquer um e abrir a porta. Sabia que era Lalinha que estava chegando. Queria ser o primeiro a lhe receber, cumprimentar, olhar nos seus olhos... Foi como um passe de mágica. Para mim a Lalinha agora era uma fada. O seu vestido simples era um manto real. O seu corpo era apenas um andor para conduzir aquela alma maravilhosa. O seu sorriso de surpresa e agradecimento por minha solicitude, de ser tão educado em lhe receber com tanta distinção, foi para mim um presente especial. Na pequena fração de segundos que nosso olhar cruzou e se aprofundou um no outro, nossos corações dispararam como em Bluetooth e permearam simultaneamente os sentimentos represados à procura de sintonia. Eu disse simplesmente:
- Boa noite, Lalinha, eu estava lhe esperando!
- Sim, eu também.
Não foi preciso dizer mais nada. Saímos de mãos dadas daquela casa sem nos despedir dos amigos, teríamos tempo para justificar a eles o nosso comportamento tão esquisito. Todo o tempo que teríamos pela frente agora seria pouco, para recuperar o tempo perdido.
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 26/04/2013
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