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CASO INSÓLITO
A igreja emergia imponente sobre o firmamento azul. Eu, sentado no banco da praça daquela cidade do interior que eu entrara pela primeira vez para conhecer, via a igreja como se debruçasse sobre mim do lado direito. Estava protegido pela sombra de uma palmeira às minhas costas e à frente ouvia o som melodioso de uma fonte que jogava ininterruptamente sua água para o alto.
Observava o povo que lotava a igreja, diversas motos e carros estacionados justificavam tanta gente, como prova e carinho e devoção do povo à São Francisco de Assis, pois hoje era o dia devotado à ele.
Uma coisa me deixava curioso. As pessoas que vieram de carro e moto, bem vestidas, todas entraram na igreja. Porém, muitas pessoas mais humildes, roupas mais simples, alguns descalços, talvez mendicantes, preferiam (?) ficar fora do templo.
Curioso, cheguei perto deles para saber o motivo de  não entrarem na igreja como os outros. Eles responderam que se sentiam incomodados, encabulados, por terem pessoas tão bem trajadas, elegantes, roupas caras, sentados ao seu lado.
Perguntei então, “porque não ficaram em casa?”. Responderam que até faziam isso, mas como hoje era o dia de São Francisco, o santo da pobreza, acharam que também deviam vir cumprimenta-lo, mesmo que ficassem fora da igreja, não ficar parecendo que só os abastados o consideram.
Achei coerente o pensamento e o sentimento daquelas pessoas por um santo que se identificava com elas e que fizeram esforço para ir ao local onde ele estava sendo reverenciado. Mas não aceitei como coerente a postura de todos dentro da igreja que reverenciavam o “pobrezinho do Cristo”  enquanto lá fora estavam os pobres nos quais o santo foi inspirado.
Lembrei que as lições de Jesus eram sempre dirigidas ao amor e aos cuidados que devermos ter com os mais desamparados da vida. Certamente, Jesus e o próprio Francisco gostariam que eles também estivessem dentro daquela egrégora cristã. Estava sendo iniciado o momento da Eucaristia onde o “corpo de Crispo” é ofertado aos crentes que se encontrassem no momento com o coração puro, que houvessem se confessado e aceitado a purgação dos pecados proposto pelo confessor. Tomei coragem e pedi ao pequeno grupo que juntos fizéssemos uma oração à Deus pedindo o perdão de nossas falhas e ofensas, e que juntos fossemos comungar com o corpo do Cristo.
Apesar de se mostrarem receosos com a sugestão, entramos na igreja , no final da fila que se dirigia para o padre e receber a hóstia. A surpresa também não foi menor para as pessoas que já estavam na igreja, aquelas pessoas nunca tiveram a ousadia de se misturarem com eles e ainda mais em busca do “corpo do Cristo”.
Mesmo assim não mostraram hostilidade. Ao chegarmos à frente do padre, como eu ia na frente da fila, com a aparência não muito diferente da aparência dos meus recentes amigos, o padre olhou-me com um aspecto interrogativo, como se perguntasse se estávamos preparados para receber o sagrado, se havíamos passado pela confissão. Intuí sua pergunta e disse que sim, todos havíamos conversado com Deus e pedido o perdão por nossas ofensas. O padre continuava a me olhar com cenho interrogativo, como a dizer que esse não era o procedimento eclesiástico que permitisse ele fazer o que esperávamos. Mesmo assim ele percebia que eu e meus companheiros estávamos dentro do Evangelho, mas ele tinha que cumprir um ritual sacerdotal que havia aprendido durante os anos de seminário e de sacerdócio.
A fila parou. Havia no ar uma contradição. O padre segurava a hóstia, mas não encontrava as justificativas burocráticas e ritualísticas para nos oferecer, a mim e meus companheiros. Devia acontecer uma determinação evangélica na sua cabeça para essa liberação, mas isso não acontecia...passei a ficar constrangido com a minha própria ousadia de ter criado tal situação e exposto pessoas que pela humildade preferiam ficar fora da igreja. Não sabia agora o que fazer para sair desse dilema.
Foi quando senti uma força estranha, superior à minha vontade, dobrar os meus joelhos, senti o meu olhar ficar abaixo do olhar do padre, mas em seguida o meu olhar voltou no mesmo nível do olhar do padre, mas eu sentia que continuava com os joelhos dobrados. Não sabia como explicar isso e percebi que a face do padre agora não era mais de constrangimento e sim de perplexidade. Sua mão deixou de vacilar e de forma segura levou a hóstia até os meus lábios.
Confesso que a partir daí a minha memória não registrou mais nada. Sofri um apagão, como acontece com os alcoólicos quando se embriagam, e não sei como cheguei em casa. Depois vim a saber pelos jornais de um caso insólito que acontecera em igrejinha do interior, onde um grupo de maltrapilhos, de joelhos e levitando, receberam do padre local o “Corpo do Cristo”.    


Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 04/10/2015


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr