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TRÓTSKY (25) – PIOR DOS PIORES
            Série da Netflix, segundo episódio.
A cena se desloca para a Rússia, 1919. Uma pessoa é enxotada do meio de pessoas fardadas que bebem e cantam no meio da rua.
- Temos um mundo novo a criar! Venham aqui!
- Ele rompeu o fronte entre o 8º e o 9º exércitos e ganhou a retaguarda.
- Quem? Foram quantos homens? Para onde ele está indo? Investigue. Informe.
- Sim, camarada presidente. Eu procuro você.
- Aqui, aqui! Sorriam, todos vocês! Não me provoquem! Sorriam, rapazes!
- T. O que está acontecendo?
- Fiquem em pé! É uma foto juntos, só isso. Pegamos um kike na rua. Digo, um fotógrafo.
- T. E isso aí? (aponta uma estátua)
- Expropriado para as necessidades do exército. Seria uma pena deixar uma gostosa dessa para trás.
- Camarada presidente! Por favor, uma foto juntos! Não vão acreditar em mim! Um simples vagabundo. Não vão acreditar que fui da sua tropa. Uma foto para fazê-los acreditar?
Trótski aceita ser fotografado com os soldados enquanto vem à sua mente palavras do passado: - Quero ver as pessoas que merecem amor. Ver rostos normais, lindos, felizes, sorrindo. Como o seu.
A Primeira Guerra Mundial terminou em 1918, a Revolução Russa aconteceu em 1917. O país tenta se estabilizar, os líderes da revolução, como Trótski, são aclamados, respeitado entre os soldados. É uma honra tirar uma foto com tal pessoa. Seu pensamento positivo quanto a sociedade em geral permanece, seu foco ainda é este, mas talvez isso tenha sido o motivo para seu afastamento do poder, que para se manter geralmente está enrodilhado com iniquidades.
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A cena se desloca para o México. Trótski viaja no banco de trás de um automóvel na companhia do jornalista.
- J. Devo escrever sobre isso também?
- T. O livro é seu. Você decide. Me diga Jacson, para que serve a propaganda?
- J. Para informar ás pessoas a posição do Estado.
- T. (rindo) Para criar ilusões de que você vai gostar. A imagem do seu mundo é maravilhosa. Um paraíso na Terra governado por titãs bons e justos protegendo-nos de todo o mal. Você está disposto a acreditar nisso que sua mente rejeita qualquer fato que contradiga essa imagem. Infelizmente. Esta auto hipnose ocorre por seu desejo de conforto, não pelos fatos.
Pensamento muito lúcido de Trótski. Ele tem autoridade de falar isso, pois sofreu na pele essa propaganda feita pelo governo, muito longe da verdade do governo da justiça, e bem próximo das falcatruas para o empoderamento de quem já está no poder e usa todos os meios para mantê-lo e ampliá-lo.
- J. O fato é, à propósito, que meio mundo venera o Lenin. E o Stalin é discípulo dele. Será que dois zeros poderiam ter tanto sucesso?
- T. Você usou a palavra certa, Frank. Venera. Liberte a sua mente, comece a pensar! Veneração é religião. Como ateu, você deve evitar isso. Aliás, eles não inventaram nada. Usaram mitos antigos. Lenin faz o papel de Deus Pai, Stalin, de Deus Filho.
- J. Sim. E você é Judas.
- T. Sim. Já ouvi isso. Trótski, o Judas. (rindo)
- J. Mas você é, julgando pela sua história. Você traiu os dois: Lenin e Parvus. Judas é o personagem cristão que melhor se encaixa a você.
Esta informação está cristalizada na mente do jornalista como uma verdade, e ele busca na entrevista os motivos para que isso acontecesse. Não está procurando entrar na história dos fatos que o outro possa contar e daí tirar uma nova conclusão, que seja favorável ou não a sua opinião inicial.
- T. você acha que culpariam Judas se ele traísse o Alto Sacerdote e não Jesus?
- J. E se os sacerdotes tivessem construído um paraíso na Terra, as pessoas venerariam eles ou Jesus?
Dois lances racionais inteligentes, onde cada um procura mostrar a verdade do que acredita. Trótski tem a vantagem, pois ele vivenciou os fatos. Jackson depende do que leu nas narrativas e no que pode colher com algum personagem da história. Para quem está na posição de Jackson, de colher a verdade, deve entrar nos relatos desarmado para procurar descobrir se existe alguma incoerência de algum lado.
- T. Você tem uma mente muito aguçada para um stalinista. Até amanhã, Jacson. E anote isso: Lenin e Parvus não queriam construir um paraíso, talvez, só para eles. Só isso.
Essa ironia de Trótski é muito atual. Geralmente quando passamos a venerar alguma personalidade acima do que os fatos mostram como inverso, é porque a mente não foi suficientemente ágil e capaz de perceber o engodo em que tal personalidade está embutida.
Jacson se afasta no carro que deixou Trótski, enquanto esse adentra o seu quarto sozinho, e entra em monólogo, que logo se transforma em diálogo com a figura imaginária de Freud.
- T. Do que você precisa? Eu? Eu já morri há um ano, não preciso de nada. Achei que tivesse me ligado. Outro homem morreu por minha causa. E não senti nada. Eu sou vazio.
Do outro lado responde a figura imaginária de Freud.
- F. Sim. Você não se tornou serial killer ou fanático religioso. Você se tornou algo mais terrível.
- T. Você não está sendo original. Ouvi muito isso desde que me exilaram da URSS.
- F. Um maníaco mata para sentir. Um fanático se mata e os outros sentem. Por um longo tempo, você não sente nada, Sr. Revolucionário. Nenhum amor, dó ou ódio. Nenhuma compaixão por suas vítimas.
- T. O que você quer? O meu pedido de desculpa?
- F. Eu me lembro de olhar nos seus olhos e ver suas pupilas se contraírem num momento de estresse. Foi lindo. Mas o que eu vejo agora? Nada. Um olhar vazio. Você está indiferente à morte dos outros... e à sua.
- T. Apenas os fracos temem a morte, Sr. Freud. Você tinha me acusado de fraqueza. Agora eu sou forte. E não tenho medo de morrer.
- F. Seu destemor é bem natural. Sabe quem não tem medo de morrer?
- T. Quem?
- F. Aqueles que já... estão mortos.
A consciência de Trótski se debate com aquilo que lhes acusam. Será que ele é tão sanguinário assim? Será que as tantas mortes que ele proporcionou, chegou ao ponto de matar a sua alma? Valeu a pena tanto esforço e agora viver exilado, longe da sua terra?
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 11/03/2019


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr