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11/09/2021 00h09
O PODER DO MITO – 3 – POBRE SERPENTE

            Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?

BM – Por falar em mitologias diferentes, vamos brincar um pouco. Tirei estes trechos do seu “Atlas”. Vou ler o Gênesis e, então, você identifica e lê o mito correspondente.

JC – Ah, sim! 

BM – Gênesis 1: “E Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança, à imagem de Deus, o criou. Macho e fêmea, os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: crescei e multiplicai-vos.”

JC – Agora veja esse trecho de uma lenda do povo Bassari da África Ocidental. “Unumbotte fez um ser humano e seu nome era homem. Em seguida Unumbotte fez um antílope e o chamou de Antílope. Unumbotte fez uma serpente, chamada Serpente. E Unumbotte disse a eles – a terra ainda não foi trabalhada. Vocês precisam amaciar a terra onde estão sentados. – E Unumbotte lhes deu sementes de todos os tipos e lhes disse: plantem todas essas sementes.”

BM – Gênesis 1: “Viu Deus tudo que havia criado e eis que era muito bom.”

JC – Agora cito do Upanishad. “Então ele percebeu... na verdade eu sou essa criação, pois eu a expeli de mim mesmo. Dessa forma, ele se tornou essa criação e aquele que sabe disso se torna um criador nessa criação.” Este é o ponto principal. Quando se sabe disso, se identifica com o princípio criativo que é o poder divino no mundo, ou seja, em você mesmo. É muito bonito.

BM – O que acha que estamos procurando quando nos atemos a uma dessas teorias da criação, a uma das histórias da criação? O que estamos procurando? 

JC – Acho que estamos procurando uma forma de experimentar o mundo onde vivemos. Que nos abra para a transcendência que o inspira. E que inspira a nós mesmos dentro do mundo. É isso que as pessoas querem. É isso que a alma pede.

BM – Então procuramos uma harmonia com o mistério que anima as coisas. Isso que chama de vasto campo de silêncio que todos compartilhamos?

JC – Sim, mas não apenas encontra-lo, mas encontra-lo no nosso próprio ambiente, no nosso mundo, reconhecê-lo, ter algum tipo de informação que nos permita ver a presença divina.

BM – No mundo e em nós mesmos.

JC – Na Índia, há essa saudação, o “anjail”. Você sabe o que significa? É a saudação de prece. Usamos para fazer nossas preces. Eles cumprimentam assim para saudar o deus que existe dentro de você. Eles têm consciência da presença divina. Quando você entra num lar indiano, você é uma divindade e você sente isso pela maneira como eles o tratam. É um tipo de hospitalidade que não existe quando há simplesmente uma pessoa e outra. É um reconhecimento da identidade.

BM – Mas as pessoas que contavam essas histórias, que acreditavam e agiam de acordo com elas, não estavam fazendo perguntas muito mais simples como: “Quem fez o mundo? Como o mundo foi criado?” Não são essas as perguntas que as histórias sobre a criação tentam responder? 

JC – Não. É através daquela resposta que eles percebem que o Criador está presente no mundo inteiro. Entende o que quero dizer? Veja essa história que acabamos de ler: “Vejo que Eu sou esta Criação”, diz Deus. Quando você vê que Deus diz que Ele é a Criação e você é uma criatura, então esse Deus está dentro de você e do homem com quem você está falando. Há então essa percepção, dois aspectos de uma única divindade. É maravilhoso.

BM – Deixe-me perguntar sobre os aspectos comuns dessas histórias. O significado do fruto proibido.

JC – Existe um tema recorrente nas histórias folclóricas chamado “A Única Coisa Proibida”. Lembre-se de Barba Azul... “Não abra aquela porta e sempre tem alguém que abre. No Velho Testamento, Deus dá uma única coisa proibida e Ele sabe muito bem, agora estou interpretando Deus. Ele sabe muito bem que o homem vai comer o fruto proibido. Mas ao fazer isso, o homem inicia sua própria vida. A verdadeira vida começa com aquele momento.

BM – Vejo também em algumas histórias antigas, a tendência humana de sempre culpar alguém.

JC – Sim.

BM – Deixe-me ler o capítulo um de Gênesis e você lê a lenda dos Bassari. “E Deus disse: Comeste da árvore que te ordenei que não comesses? E o homem respondeu: A mulher que me destes por companheira me deu o fruto da árvore e eu o comi. E disse o Senhor à mulher: O que fizeste? E a mulher disse: A serpente me enganou, e eu comi. Essa história de culpar os outros começou cedo! Vejamos a lenda dos Bassari.

JC – Ela também é severa com a serpente. “Um dia a Serpente disse. Nós também devemos comer esses frutos. Por que passar fome?” E o Antílope disse: “Mas não sabemos nada sobre essa fruta.” Então o homem e sua mulher tomaram a fruta e a comeram. E Unumbotte desceu do céu e perguntou: “Quem comeu a fruta?” E eles responderam: “Fomos nós”. Unumbotte perguntou: “Quem disse que vocês podiam comer essa fruta?” E eles responderam: “Foi a Serpente”. 

BM – É a mesma história.

JC – Pobre Serpente.

BM – o que concluiu do fato de que nessas histórias os atores principais acusam outro personagem de ser o causador da queda? 

JC – Acontece que, de fato é a Serpente. E nas duas histórias, a Serpente é o símbolo da vida, que descarta o passado e continua a viver.

BM – Por quê?

JC – É o poder da vida, porque a serpente solta a pele, assim como a luz solta sua sombra. Na maioria das culturas, a serpente é positiva. Até a mais venenosa da Índia, a cobra, é um animal sagrado. E a serpente Naja, o rei-serpente Nagaraja é a divindade mais próxima do Buda. Porque a serpente representa o poder da vida no campo temporal de enfrentar a morte. E Buda representa o poder da vida no campo da eternidade, de viver eternamente. Vi uma coisa fantástica de uma sacerdotisa de Burma, que tinha de trazer chuva para seu povo, atraindo um rei-cobra para fora da toca e lhe dando três beijos no nariz. Ali estava a naja, o doador da vida, o doador da chuva, que pertence à vida, uma figura divina positiva, não negativa. As histórias cristãs invertem isso, pois a serpente foi a sedutora. Isso equivale a recusar-se a afirmar a vida. Segundo esta visão, a vida é o mal. Qualquer impulso natural é pecado, a menos que você tenha sido batizado. Ou circuncidado. Nesta tradição que herdamos. Por Deus! 

BM - Por ter sido a mulher a tentadora, as mulheres tiveram que pagar um alto preço, pois na mitologia, em algumas mitologias, foram elas que provocaram a queda.

JC – Claro que foram elas. A mulher representa a vida. O homem só entra na vida através da mulher. E assim, é a mulher que nos traz para este mundo de polaridades, de pares de opostos, de sofrimento. Creio que é uma atitude muito infantil dizer não à vida com toda a sua dor. Dizer que é uma coisa que não deveria ter acontecido. Schopenhauer diz num dos seus maravilhosos capítulos, creio que é em “O Mundo Como Vontade e Ideia”, que “A vida é algo que não deveria ter acontecido. Ela é, na sua própria essência e caráter, uma coisa terrível, pois precisamos matar e comer para viver.” Ou seja, sempre no pecado, segundo critérios éticos.

Uma forte reflexão Joseph Campbell traz à minha consciência. O sentido de culpa e perversidade que joguei sobre a serpente devido os ensinamentos bíblicos, fazem eu rever a consciência. Caso não fosse a participação da serpente nessa história, induzindo Eva a comer do fruto proibido, do conhecimento do bem e do mal, da dualidade, nós não existiríamos. Até hoje viveriam Adão e Eva no paraíso, uma existência idílica, utópica, sem sofrimento, ou transformações. O tempo não existiria, nós não existiríamos. A serpente foi o elemento que deu condição de existência à vida, como nós a conhecemos hoje. Dessa forma, é justo pensar de forma positiva sobre a o comportamento da serpente, como faz a maioria das mitologias. Então, aquele ar de malignidade que vocifera aquele ex-presidente que se tornou bandido e ex-presidiário, não pode ser tão culpado na sua relação com a serpente. Mas, consideremos, tudo isso no campo simbólico, pois quando chega ao nível da realidade, tanto a peçonha da cobra quanto as iniquidades dos marginais são prejudiciais para nós, individual e coletivamente.  

Publicado por Sióstio de Lapa
em 11/09/2021 às 00h09
 
10/09/2021 00h09
O PODER DO MITO – 2 - DUALISMO

            Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?

            BM – O que não pode ser conhecido por um nome, na nossa frágil tentativa de revesti-lo com a linguagem.

            JC – E na nossa linguagem, a palavra para designar o que é de mais transcendental é “Deus”. 

BM - Lembra o que lhe passou pela cabeça na primeira vez que viu a Criação, de Michelângelo?

JC – Quando conheci essa obra minha noção de divindade não era tão pessoal. Essa ideia de Deus como um velho barbudo com um temperamento meio desagradável é uma forma materialista de se falar sobre a transcendência. É exatamente o oposto do que foi encontrado numa ilha no Golfo de Bombaim, algo que data do século 8. É uma caverna maravilhosa. Você sai de uma paisagem iluminada e entra lá. Caminhando na escuridão não se enxerga nada. Mas se você continuar andando devagar, aos poucos seus olhos se acostumam e você vê aquela coisa enorme, de uns seis metros de altura por seis de largura. A cabeça central é a máscara da eternidade. Essa é a máscara de Deus. A máscara da eternidade. Essa é a metáfora pela qual a eternidade deve ser vivenciada com esplendor. E as outras duas figuras ao lado de forma oposta? Toda vez que nos afastamos da transcendência chegamos ao campo dos opostos. Esses dois pares de opostos se apresentam como macho e fêmea, vindos desses dois lados. E o ser que comeu o fruto da árvore do conhecimento, não só do bem e do mal, mas do macho e da fêmea, do certo e do errado, da luz e da escuridão. Tudo nesse campo do tempo é dualístico. Passado e futuro, morto e vivo, ser ou não ser, é e não é. 

BM - E qual o sentido de eles estarem ao lado da máscara de Deus, da eternidade? O que esta escultura nos diz? 

JC – A máscara representa o centro e os dois representam os opostos. Sempre aparecem em pares. Tente colocar sua mente no meio. A maioria de nós coloca a mente no lado do bem, contra aquilo que achamos ser o mal. Creio que foi Heráclito que disse: “Para Deus todas as coisas são boas, certas e justas. Mas para o homem algumas são certas e outras não.” O homem está no campo do tempo e um dos problemas da vida é compreender os dois termos. Ou seja, eu conheço o centro. E sei que o bem e o mal são simples manifestações temporais.

BM – Existem mitos mais verdadeiros que outros?

JC – Eles são verdadeiros em sentidos diferentes. Entende? Há toda uma mitologia baseada na compreensão que transcende o dualismo. A nossa mitologia é baseada no dualismo. Assim, nossa religião tende a enfatizar a ética, pecado, expiação, certo e errado. Veja, Eva começou com pecado, ou seja, saindo fora da zona mitológica do Paraíso, onde não existe o tempo. E o homem e a mulher nem sabem que são diferentes um do outro. Lá, os dois são apenas criaturas. E Deus e o homem são praticamente a mesma coisa. “Ele caminha no frescor da tarde no jardim onde estamos.” Eles comem a maçã, vem o conhecimento dos pares opostos e o homem e a mulher cobrem suas vergonhas. Eles são diferentes. Deus e o homem são diferentes. E a natureza está contra o homem. Certa vez, assisti uma palestra incrível de Daisetz Suzuki, aquele maravilhoso filósofo Zen que esteve aqui quando tinha mais de 90 anos. Começou a ensinar na Suíça, e eu o ouvi em Ascona. Ele ficou de pé e disse: “Deus contra o homem, o homem contra Deus; homem contra natureza, natureza contra o homem; natureza contra Deus, Deus contra natureza. Que religião mais engraçada.” Nas outras mitologias, a pessoa se coloca em sintonia com o mundo. Mas se o mundo é uma mistura do bem e do mal, você não se coloca em sintonia com ele. Você se identifica com o bem e luta contra o mal. E esse é um sistema religioso do Oriente Médio depois da época de Zaratustra. Está presente na tradição bíblica. No cristianismo, assim como no islamismo. É esse negócio de não ser uno com a natureza. E até falamos com certo desprezo das “religiões da natureza”. Com essa queda, a natureza foi corrompida. É um mito que corrompe o mundo inteiro para nós. E cada ato espontâneo é pecaminoso, porque a natureza é corrupta e tem de ser corrigida, não se pode ceder a ela. Surge uma civilização totalmente diferente, um modo de vida diferente conforme o seu mito, se ele vê a natureza decaída ou como sendo ela mesma, uma manifestação da divindade e do espírito como revelação da divindade que é inerente à natureza.

BM – Essa ideia indiana antiga da natureza como reveladora da divindade porque ela nos impediria de dominar a natureza?

JC – Mas essa é a condenação bíblica da natureza que os americanos herdaram de sua religião e trouxeram consigo. Deus não está na natureza. Deus é separado dela e a natureza não é Deus. Essa distinção entre Deus e o mundo não existe na base do hinduísmo, nem do budismo. Nunca me esquecerei de uma experiência que tive no Japão. Estar num lugar que nunca ouviu falar da queda do Jardim do Éden. Estar num lugar onde um texto xintoísta diz que “Os processos da natureza não podem ser malignos.” Onde cada impulso natural não deve ser corrigido, mas sim, sublimado, embelezado. E aquele maravilhoso interesse pela beleza natural e pela cooperação com a natureza, a ponto de em jardins japoneses você não saber onde começa a natureza e onde termina a arte. Isso para mim foi uma tremenda experiência e é uma mitologia diferente.

Essas conclusões de Joseph Campbell me fazem pensar no conflito que existe hoje entre o atual Papa e os padres que seguem a tradição da Igreja Católica, de seguir as lições do Cristo, identificando e combatendo o mal, levando o amor e a ética nos relacionamentos, num clima de fraternidade, acusando com veemência todas as iniquidades, principalmente a hipocrisia. O Papa Francisco tende a seguir os caminhos da modernidade, do positivismo, sem fazer a distinção severa entre o bem e o mal, considerando todos como irmãos, assim como o Pai considera todos como filhos. Posso concluir que o pensamento e comportamento do Papa se aproxima mais da essência de Deus, enquanto os padres tradicionais se aproximam mais da essência do Cristo. Parece um paradoxo, mas, de acordo com Campbell estão correto. Em Deus encontramos a Unidade, em Jesus o Dualismo. E nós? Seguimos Deus ou a Jesus? Parece que não temos cacife suficiente para seguir a Deus, parece mais prático e seguro seguir Jesus e seu dualismo, e construir o Reino de Deus como ele ensinou, deixando de fora aqueles que não querem cumprir a lei do amor, da justiça, da solidariedade, e só pensam nos crimes, iniquidades, corrupções. Não tenho sabedoria suficiente para entender a justiça dessas iniquidades que o Pai reconhece dentro de um mesmo conceito de utilidade. Mas, acredito que Ele queira que eu siga os ensinamentos do Mestre que Ele nos enviou para ensinar este caminho de Verdade e Vida.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 10/09/2021 às 00h09
 
09/09/2021 00h08
FIADOR DO AMOR

Como posso do amor que sinto eu falar

Se palavras não encontro em minha mente

Se o coração sem mente quer sonhar

Se do mundo no qual vivo estou ausente?

 

Ah! Como posso dizer-te, alma querida

Se o que sinto de amor, é mesmo amor

Ou um delírio que me enche de ferida

Um grito de socorro ao Criador?

 

Ah! Como eu queria do amor ser fiador

E que ninguém reclamasse sua falta

Ou de saudade chorasse amarga dor

 

Eu cumpriria meu dever com alegria

Mesmo em frente às luzes da ribalta

Meu coração com certeza entregaria

Publicado por Sióstio de Lapa
em 09/09/2021 às 00h08
 
08/09/2021 00h06
O PODER DO MITO – 1 - SIGNIFICADO

            Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?

            BM – Quando Joseph Campbell era criança, seu pai o levou ao museu de História Natural de Nova Iorque e ele ficou fascinado pelos totens e máscaras. Ele se perguntava: “Quem os fez?, o que significavam?” Começou a ler tudo sobre índios, seus mitos e lendas. Aos 10 anos, já começava a busca que o tornou um dos maiores estudiosos de mitologia e um dos professores mais interessantes do nosso tempo. Diziam que ele dava vida aos ossos do folclore e da antropologia. Seu objetivo era compreender o poder das histórias e lendas da raça humana. Principalmente os temas comuns e princípios obscuros que estimularam nossa imaginação através dos tempos. O Deus ciumento de Abraão não é o deus das histórias da Índia que não mostra nem ira, nem piedade. Mas mesmo que as tradições místicas sejam diferentes segundo Campbell, elas coincidem num aspecto. Despertam para uma consciência mais profunda do ato de viver e nos guiam por dificuldades e traumas, do nascimento até a morte. Certa vez, Campbell disse aos alunos da Universidade Sarah Lawrence... “Se vocês realmente querem ajudar este mundo precisam ensinar como viver nele.” Foi isso que ele ensinou. Nos últimos verões da sua vida, em muitas conversas gravadas na biblioteca do estúdio Lucasfilm na Califórnia conversamos sobre como a mitologia ainda pode despertar numa forma de medo, gratidão e até êxtase.

            BM – Por que deveríamos nos preocupar com os mitos? O que eles têm a ver com a minha vida?

            JC – Minha primeira resposta seria: “vá em frente, viva sua vida, é uma vida boa e você não precisa nada disso.” Não acho que as pessoas devam se interessar por certos assuntos só por serem considerados importantes e interessantes. Acredito que somos envolvidos pelo assunto. Mas você pode achar que com uma boa introdução ao tema esse assunto o envolva. E como eu posso ajuda-lo quando você for envolvido? Essas informações vindas de épocas antigas que têm a ver com os temas que sempre ajudaram a vida do homem, ajudaram a construir civilizações e formar religiões ao longo dos milênios, têm a ver com profundos problemas internos, mistérios internos e umbrais internos de passagens. E se você não conhecer os sinais ao longo do caminho terá que descobrir tudo sozinho. Mas depois que o assunto lhe envolve, há sempre uma sensação de uma ou outra dessas tradições de informação, de uma vivificação profunda e enriquecedora que você não vai querer abandoná-la.

            BM – Então, mitos são as histórias da busca feita através dos tempos, do significado, do sentido da vida, do significado da vida, para tocar a eternidade, para compreender o mistério, para descobrir quem somos.

            JC – Dizem que todos nós buscamos um sentido para a vida. Não acho que estejamos realmente buscando isso. Acho que buscamos a experiência de nos sentirmos vivos de tal forma que nossas experiências no nível puramente físico tenham ressonâncias internas no mais profundo do nosso ser e da nossa realidade. E assim chegamos a sentir realmente o êxtase de estarmos vivos. No fundo a questão é essa. E é isso que essas pistas nos ajudam a encontrar dentro de nós mesmos.

            BM – Os mitos são pistas?

            JC – Os mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana.

            BM – Aquilo que somos capazes de conhecer dentro de nós?

            JC – Sim.

            BM – E de experimentar dentro de nós? Gostei da mudança da definição de mito, de busca do significado para experiência do significado.

            JC – A experiência da vida. A mente tem a ver com o significado. Qual é o significado de uma flor dentro de nós? Há uma história zen sobre um sermão de Buda, de uma vez em que o seu grupo estava todo reunido e ele simplesmente mostrou uma flor. Houve apenas um homem, Kashyapa, que lhe fez um sinal com o olhar mostrando que compreendia o que aquilo significava. Qual o significado do universo? Qual o significado de uma pulga? Eles simplesmente existem. Estão aqui. É isso. E o significado de você mesmo é que você está aqui. Mas estamos tão absorvidos em fazer coisas, em atingir objetivos de valor externo, que esquecemos que o valor interno, o êxtase, associados ao simples fato de estar vivo é que importam. Queremos pensar em Deus. Ora, Deus é um pensamento, é um nome, é uma ideia, mas que se refere a algo que transcende qualquer pensamento. O mistério supremo do ser está além de toda categoria de pensamento. Meu amigo Heinrich Zimmer costumava dizer “As melhores coisas não podem ser ditas. Porque elas transcendem o pensamento. As segundas melhores coisas são mal compreendidas, pois são pensamentos que se referem ao que não pode ser pensado. E ficamos presos com os pensamentos. As terceiras melhores coisas são as que nós falamos.” Entende? E o mito está nesse nível de referência onde metáforas se referem às coisas absolutamente transcendentais.

            BM – O que não pode ser conhecido.

            JC – O que não pode ser conhecido. 

            Interessante essa perspectiva mental que o importante é sentir que estamos no mundo, que vivemos nossa realidade, qualquer que seja ela. Parece ser o sentido primordial, ficando todos os demais como reflexos dele, como o luar é o reflexo da luz que recebe do sol. A minha sensação de estar no mundo deve ser mais importante que a ida a um movimento social que visa um objetivo comum, como este acontecido ontem no 7 de setembro. Parece um conceito estático e que se os maus intencionados se movem no sentido de nos explorar, ficar inerte na condição de ficar na contemplação de estar vivo como o mais importante, parece carregar uma incoerência. Sentir que estou vivo e dar um grande significado a isso é importante, mas sem esquecer dos deveres éticos que um ser vivo no mundo natural deve cumprir para que sua existência não fique maculada pela covardia, preguiça ou ingratidão. 

Publicado por Sióstio de Lapa
em 08/09/2021 às 00h06
 
07/09/2021 00h05
O JULGAMENTO (S2) – VÍTIMA 1

            J – Declaro aberta a segunda sessão deste julgamento e chamo o Promotor para apresentar as razões do Estado.

            P – Na condição de defensor dos interesses do Estado, da segurança física, emocional e financeira dos cidadãos, chamo o Advogado Acusatório com o qual trabalho para o início de nossas alegações.

            AA – Para dar início às inúmeras provas que levantamos sobre a nocividade desse indivíduo que agora julgamos e devemos punir exemplarmente, chamo a primeira vítima com a qual ele elaborou todo o seu plano maléfico que aperfeiçoou e pratica até o dia em que foi preso. 

            V1 – Senhores, eu me sinto extremamente enganada, iludida, decepcionada, fracassada, devido ao homem que tanto amei e que hoje está ali, sentado à minha frente, nesse banco dos réus. Eu era uma jovem simples, ideológica, queria construir um lar com o homem que meu coração escolhesse para amar, independente de sua posição acadêmica e financeira, pois quando eu o conheci era uma pessoa pobre, simples e sem instrução. Infelizmente, meu coração se enganou e enganou a minha mente. Eu me apaixonei por ele com toda a dedicação e honestidade. Com todas as forças da minha alma. Fui contra a minha mãe, e teria ido contra meu pai, se ele já não tivesse falecido e me deixado órfã de sua presença. Ele também demonstrava me amar e tudo que fazia comprovava isso. Vivemos anos felizes... tivemos filhos, evoluímos acadêmica, espiritual e financeiramente. Mas eu estava sendo traída, e quando um dia, descontraidamente, com certa curiosidade, mas sabendo que iria ter uma resposta negativa, eu perguntei se ele seria capaz de me trair algum dia, ele respondeu sem vacilar que sim, e que já estava fazendo isso... estava me traindo! Quando eu procurei saber mais detalhes, ele tentou justificar de forma incompreensível para mim e tudo piorou na minha mente, quando ele disse que eu tinha o direito de fazer o mesmo que ele fazia, quer dizer, eu podia trair também! Foi a maior tortura que uma pessoa pode sofre na alma. Ver destruída dentro de seu coração a imagem de um homem que até aquele momento idolatrava, que não existia pessoa mais perfeita e justa, romântica e amorosa em todo o mundo. 

            AD – Ele chegou a lhe agredir?

            V1 – Não, fisicamente, mas causou sofrimento no mais profundo de minha alma.

            AD – Ele lhe mentia?

            V1 – Não.

            AD – Preferia que ele tivesse lhe mentido sobre o que acontecia para não lhe causar dor?

            V1 – Não, preferia que ele não tivesse feito o que fez, amando e se relacionando sexualmente com outras pessoas, quebrando o nosso sagrado juramento de fidelidade para a vida toda. 

            AD – Você procurou saber porque ele fez o que fez?

            V1 – Não, na minha mente não tinha justificativa, pois eu jamais faria o que ele fez!

            AD – Não seria importante saber dos seus motivos? Será que não existiria algum que fosse compreensível e atenuasse a sua culpa?

            V1 – Como pode ter motivos compreensíveis para um homem que trai o seu compromisso conjugal e vai para a cama com outra mulher?

            AD – Você tem certeza que não existe nenhum? Não teve curiosidade de checar com ele essa possibilidade?

            V1 – Não tive cabeça para fazer perguntas, para alimentar minha curiosidade. Eu estava incendiada pelo ódio, frustração decepção... a pessoa que eu mais amava no mundo, pela qual deixei a minha casa, minha mãe, minha família, para segui-lo, confiando em sua honestidade e amor exclusivo para mim... como poderia ter curiosidade para descobrir motivos, justificativas? 

            AD – Sei, entendo que esse primeiro momento de descoberta de uma nova realidade foi muito dramático. Mas tantos anos já passaram e essa raiva endureceu o seu coração que não permitiu em nenhum momento você verificar o que se passou na mente do homem que tanto amava. Hoje, depois de dezenas de anos passados, não consegue controlar sua raiva e ouvir o que aconteceu com ele para tão forte transformação? Não seria interessante atender agora esta curiosidade? 

            V1 – Nada que ele apresente justificará o seu comportamento tão mau e ingrato para comigo. Ele não tinha esse direito!

            AD – Você quer passar por este julgamento sem saber o que motivou a mente do seu marido para transformação tão drástica no seu comportamento? Não seria interessante para o Estado, o magistrado, os jurados, as pessoas presentes aqui e além, para seus próprios filhos, essa explicação?

            P – Eu não me oponho para que seja dada essa explicação. Não vejo nos textos jurídicos, constitucionais, nenhum artigo que justifique tal comportamento ou atenue a sua pena, pelo contrário, pode aumentar. Portanto, tem meu aceite. 

            AA – Também tenho essa convicção. Acredito que a explicação de ato tão bizarro dentro da sociedade, vai reforçar o sentimento de justiça que a minha representada veio requerer neste tribunal, e facilitar para que os jurados tenham mais firmeza na punição exemplar. Se a minha representada acatar a sugestão podemos chamar o Réu ao banco das testemunhas para suas explicações, dentro do contexto da verdade.

            V1 – Se é para o bem da justiça, do esclarecimento sobre o rigor da pena, eu permito que seja explicada o que se passava na mente do homem que eu amava e que por trás maquinava contra mim.  

            J – Chamo ao banco das testemunhas o Réu, e encerro a sessão por hoje.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 07/09/2021 às 00h05
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