Meu Diário
15/09/2013 00h01
AFABILIDADE

            Li uma história que não sei bem citar aonde. Falava de uma pessoa que tinha um amigo e se desenvolveram, cada um por seu lado. Certa vez o amigo que teve um bom desenvolvimento... Ah! Lembrei agora, vou atrás do livro e transcrever a história, fica mais fidedigno o que quero considerar.

            Encontrei no livro PONTOS E CONTOS, psicografia de Chico Xavier pelo espírito Irmão X no capítulo 40, “Olá, meu irmão!”. Dizia assim literalmente:

            A disposição amiga – acentuava Cipriano Neto – é o verdadeiro tônico espiritual. Não raro, envenenamos o coração, à força de insistir na máscara sombria. Má catadura é moléstia perigosa, porquanto as enfermidades não se circunscrevem ao corpo físico. Quantos negócios de muletas, quantas atividades nobres interrompidas, em virtude do mau humor dos responsáveis? Claro que ninguém se deixe absorver pelos malandros de esquina, mas o respeito e a afabilidade para com as criaturas honestas, seja onde for, constituem alguma coisa de sagrado, que não esqueceremos sem ferir a nós mesmos.

            À frente da pequena assembleia, toda ouvidos, Cipriano, com a graça de sua privilegiada inteligência, continuou após leve pausa:

            - Na terra o preconceito fala muito alto, abafando vozes sublimes da realidade superior. Nesse capítulo, tenho a minha experiência pessoal bastante significativa.

            Meu amigo calou-se, por alguns momentos, vagueou o olhar muito lúcido, através do horizonte longínquo, como a vascular o passado e prosseguiu:

            - É quase inacreditável, mas o meu fracasso em Espiritismo não teve outra causa. Não ignoram vocês que meu coração de pai, dilacerado pela morte do filho querido, fora convocado à Doutrina dos Espíritos, ansioso de esclarecimento e consolação. Banhado de conforto sublime, senti que minhas lágrimas de desespero se transformaram em orvalho de agradecimento à bondade de Deus. Meu filho não morrera. Mais vivo que nunca, endereçava-me carinhosas palavras de amor. Identificara-se de mil modos. Não havia lugar à dúvida. Inclinei-me, então, à Doutrina renovadora. Saciado pela água viva de santas consolações, não sabia como agradecer à fonte. Foi aí que recordei as minhas possibilidades intelectuais. Não seria justo servir ao Espiritismo, através da palavra ou da pena? Poderia escrever para os jornais ou falar em público. Profundamente reconhecido à nova fé, atendi a primeira sugestão de um amigo e dispus-me a fazer uma conferência. Anunciou-se o feito e, no dia aprazado, compacta assistência esperou-me a confissão. Seduzido pela beleza do Espiritismo evangélico, discorri longamente sobre a caridade. Aplausos, abraços, sorrisos e felicitações. No círculo de meus companheiros de literatura, porém, o assunto fizera-se obrigatório. Voltando à avenida, no dia imediato ao acontecimento, meu esforço foi árduo para convencer os confrades das Letras de que não me achava louco. Infelizmente, porém, minha decisão não se filiava senão à vaidade. Pronunciara a conferência como se o Espiritismo necessitasse de mim. Admitia, no fundo, que minha presença honrara, sobremaneira, o auditório, e que a Codificação Kardequiana em mim encontrara prestigioso protetor. Desse modo, alardeava suma importância em minhas palestras novas. Citava a Antiguidade clássica, recorria aos grandes filósofos, mencionava cientistas modernos. Quando nos encontrávamos, meus colegas e eu, no ápice das discussões preciosas, eis que surge o Elpídio, velho conhecido meu e antigo tintureiro em Jacarepaguá. Sapatos rotos, calça remendada, cabelos despenteados, rosto suarento, abeirou-se de mim e estendeu-me a destra, exclamando alegre:

            “Olá, meu irmão! Meus parabéns!... Fiquei muito satisfeito com a sua conferência!

            “Entreolharam-se os meus amigos, admirados.

            “E confesso que respondi a saudação efusiva, secamente, meneando levemente a cabeça e sentindo-me deveras humilhado.

            “Em vista do meu silêncio, o tintureiro despediu-se, mostrando enorme desapontamento.

            “É de sua família?’ – indagou um companheiro mais irônico.

            “Estes senhores espiritistas são os campeões da ingenuidade!’ – exclamou outro circunstante.

            “Enraiveci-me. Não era desaforo semelhante homem do povo chamar-me de “irmão”, ali, em plena avenida, diante dos colegas de tertúlias acadêmicas? Estaria, então, obrigado a relacionar-me com toda espécie de vagabundos? Não seria aquilo irmanar-me a rebotalhos de gente, na via pública?

            “O incidente criou em mim vasto complexo de inferioridade.

                “Cegavam-me, ainda, velhos preconceitos sociais e a ironia dos companheiros calou-me fundo, no espírito. A ausência de afabilidade e a incompreensão grosseira dominaram-me por completo. O fermento da negação trabalhou-me o íntimo, levedando a massa de minhas disposições mentais. Resultado? Voltei a aspereza antiga e, se cuidava de Doutrina, confinava-me a reduzido círculo doméstico. Não estimava a companhia ou a intimidade daqueles que considerava inferiores. Os anos, todavia, correm metodicamente, alheios à nossa vaidade e ignorância, e impuseram-me a restituição do organismo cansado ao seio acolhedor da terra. Sabem vocês, por experiência própria, o que nos acontece a essa altura da existência humana. Gritos estentóricos de familiares, pavor de afeiçoados, ataúde a recender aromas de flores das convenções sociais. Em meio da perturbação geral, senti que sono brando se apoderava de mim. Nunca pude saber quantos dias gastei no repouso compulsório. Despertando, porém, debalde clamei por meu filho bem-amado. Sabia perfeitamente que abandonara a esfera carnal e ansiava por reencontrar-lhe o carinho. Deixei a residência antiga, ferido de amargosas preocupações. Atravessei ruas e praças, de alma opressa. Atingi a avenida, onde me dava ao luxo de palestrar sobre Ciência e Literatura. E ali mesmo, junto ao aristocrático Café, divisei alguém que não me era estranho às relações individuais. Não tive dificuldade no reconhecimento. Era o Elpídio, integralmente transformado, evidenciando nobre posição espiritual, trocando ideias com outras entidades da vida superior. Não mais os sapatos velhos, nem o rosto suarento, mas singular aprumo, aliado a expressão simpática e bela, cheia de bondade e compreensão.

            “Aproximei-me envergonhado. Quis dizer qualquer coisa que me revelasse a angústia, mas, obedecendo a impulso que eu jamais soube explicar, apenas pude repetir as antigas palavras dele:

            “Olá, meu irmão! Meus parabéns!’

            “Longe, todavia, de imitar-me o gesto grosseiro e tolo de outro tempo, o generoso tintureiro de Jacarepaguá abriu-me os braços, contente, e exclamou com sincera alegria:

            “Ó meu amigo, que satisfação! Venha daí, vou conduzi-lo ao seu filho!

            “Aquela bondade espontânea, aquele fraternal esquecimento de minha falta eram por demais eloquentes e não pude evitar as lágrimas copiosas!...”

            Nossa pequena assembleia de desencarnados achava-se igualmente comovida. Cipriano calou-se, enxugou os olhos úmidos e terminou:

            - A experiência parece demasiadamente humilde; entretanto, para mim, representou lição das mais expressivas. Através dela fiquei sabendo que a afabilidade é mais que um dever social, é alguma coisa de Deus que não subtrairemos ao próximo, sem prejudicar a nós mesmos.

            Parece que a espiritualidade superior sonda os nossos corações e observa que tem a intenção de melhorar a cada dia. Então apresenta lições através de vários canais que impressionam a nossa sensibilidade e estimulam a nossa razão no sentido de praticar aquilo que é ensinado. Há muito eu tinha parado a leitura desse livro exatamente nesse capítulo. Por algum tipo de intuição eu o encontrei e terminei de ler o capítulo que havia começado. Achei correta a lição da afabilidade e achei que não tinha dificuldade nessa área. Mas fui colocado à prova.

            À noite quando voltava para casa, parei na sorveteria para comprar um depósito com 4 bolas, como muitas vezes faço. Estava debruçado sobre o balcão escolhendo os sabores, quando percebo atrás de mim uma voz tímida. Volto o olhar e percebo um velho conhecido meu que tentara parar de usar drogas, mas sofreu uma recaída e não mais se recuperou. Vive pelas ruas e agora estava ali na minha frente: magro, barbudo, sujo... estendeu a destra para mim e me cumprimentou com palavras que não consegui guardar. Respondi ao gesto e apertei a sua mão, mas com a mesma frieza que Cipriano relatou com relação ao tintureiro de Jacarepaguá. Dei a entender que ele estava perturbando a escolha dos meus sorvetes. O empregado da sorveteria fez sinais com rispidez para ele se retirar, que não perturbasse os fregueses. Ele olhava para mim como se quisesse um amparo. Procurei, felizmente, ser solidário e não me associar ao gesto de exclusão. Olhei com afeto para ele como forma de mostrar ao empregado que ele não estava me perturbando. Mas por dentro de mim se levantavam diversas críticas que me mantinham afastado. “Ele estava ali querendo dinheiro e certamente para usar drogas” pensava assim, se eu ceder e lhe der qualquer coisa, vai ser para o prejuízo dele. Dei as costas a ele para terminar de escolher os meus sorvetes. Estava decidido dar qualquer coisa para ele, mesmo que ele desviasse para o uso de drogas, seria agora responsabilidade dele, não minha. Quando recebi o sorvete e voltei para sair e falar com ele, não o encontrei mais. Eu não tinha demorado mais do que um minuto para receber o sorvete e voltar para falar com ele. Não consegui entender como ele desapareceu tão rápido. Se eu não tivesse apertado a sua mão poderia pensar que foi um fantasma.

            Fui para casa meditando no fato e fiz a ligação com essa história relatada pelo Irmão X, por isso fiz questão de reproduzi-la fielmente. Após a leitura eu tinha plena convicção que a afabilidade não era problema para eu estudar para aperfeiçoar minha evolução espiritual. De imediato a espiritualidade que sonda o meu coração, quis verificar se isso que eu achava que tinha tanta certeza, de ser afável com qualquer pessoa, era real. Intuiu para que esse velho conhecido aparecesse na sorveteria com as mesmas características do tintureiro de Jacarepaguá. Não passei no teste, apesar de ter me saído um pouco melhor do que o Cipriano. Eu reconheci de imediato a minha falha, de não ter considerado o próximo que passa dificuldades como irmão. De não ter tido a afabilidade que ele esperava. Sei que naquele momento que subtrai a afabilidade, um dom de Deus que devo dividir com o próximo, eu prejudiquei a mim mesmo!

            Mais um motivo para que eu corrija meu excesso de otimismo em me considerar muito bom na aplicação de diversas virtudes, pois na hora de ser testado eu não me saio à contento!  


Publicado por Sióstio de Lapa em 15/09/2013 às 00h01
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