Meu Diário
27/10/2015 00h59
DISCIPLINA E TÉCNICA EM PSIQUIATRIA

            Fui abordado pelo diretor de um dos hospitais no qual trabalho, que um paciente meu estava na recepção prestes a fugir. Achei que devia dar uma informação mais detalhada em resposta e coloco neste espaço esse diálogo ocorrido entre nós, até como forma de orientação didática para quem lê:

            - Boa noite. Recebi informações a seguir do responsável pela recepção: Paciente que ateou fogo ontem, andando livremente pela recepção hoje à tarde. Fui informado pelo recepcionista que o paciente ficou esperando uma oportunidade para fugir... Assim que ele parou lá, disse que queria ir embora. O recepcionista o chamou e o levou até o técnico, que o levou para o setor... Estou lhe informando, pois me informaram que esse paciente está sob seus cuidados...

            - Bom dia. Preciso fazer um relatório sucinto desse caso pra você sentir melhor a dimensão do nosso trabalho. Recebi esse caso sabendo que seria difícil, depois de ter falado com a família e saber do histórico de manipulação do paciente, desde a sua internação em clínica anterior. Na primeira entrevista que fiz com ele estava ainda sedado, reduzi o esquema da medicação, mas deixei restrito ao setor em observação, sem autorização de fazer nem ligação telefônica. Por coincidência, na sexta-feira pela manhã, eu estou justamente falando com os familiares dele, quando recebo a notícia que o paciente ateou fogo no colchão e está embaixo (o setor dele é o terceiro andar) querendo falar com a mãe. De imediato eu peço para falar com o médico de plantão e digo, na frente da mãe e do irmão que estavam comigo, que era totalmente contraindicado o paciente naquelas circunstâncias falar com a família, que não deveria ter nem descido para tentar isso. Que deveria ser medicado de urgência no setor do seu apartamento e contido se necessário. Reclamei da equipe por ter permitido o paciente descer, mesmo com a ocorrência do incêndio que ele provocou, pois isso era o que ele queria. Senti o receio da equipe em fazer esse procedimento e eu mesmo fiz o esquema de urgência para ser aplicado no paciente. Senti que a família que estava ouvindo todas as minhas providências, estavam me apoiando. Não exigiram falar com o paciente e foram para casa. Subi ao terceiro andar, local do apartamento do paciente, apesar da tentativa da equipe de interditar o setor. Fui até o apartamento para ver o estrago, e falei com o paciente que ainda não havia sido medicado. Ele se mostrava calmo na minha frente, dizia que estava arrependido, que queria falar com a família e que não precisava tomar as injeções que prescrevi. Expliquei, com calma, que devido a ocorrência ele teria que tomar a medicação injetável e que não poderia falar com a família, essa era a rotina técnica. Até mesmo a vista do domingo estaria condicionada ao seu bom comportamento no setor, conforme deixei prescrito no prontuário. O paciente terminou aceitando minhas ponderações e aceitou as injeções sem o uso da força, como já estava preparado. Deixei o paciente medicado no seu setor, no terceiro andar, e ainda tranquilizei os outros pacientes que aquela fumaça residual não seria motivo para a interdição do setor, mesmo porque o pessoal da manutenção já estava fazendo a limpeza. Logo em seguida fiz questão de falar pessoalmente, pelo celular, com a família sobre as providências que tomei, que ele havia sido medicado e mantido sob observação no setor. Que sua visita no domingo estava condicionada ao seu bom comportamento até esse momento. A família mais uma vez aprovou a minha conduta e agradeceu pelas informações, já que eu achei necessário fazer pessoalmente, sem a intervenção do Serviço Social, desde que eles foram testemunhas do que ocorreu e ouviram minhas providências. Portanto, agradeço a sua comunicação sobre o paciente e me sinto tão surpreso quanto você por essa ocorrência. Acredito que seja necessária uma reunião educativa com a equipe para evitar a manipulação desse tipo de paciente. Caso seja possível, eu gostaria também de estar presente nesse momento para explicar como estou fazendo agora, o comportamento firme que devemos ter com o paciente, a família e o procedimento técnico. Afinal sou um felizardo ex-aluno do professor Severino Lopes que nos ensinou como tratar a doença com disciplina e técnica, sem nos deixar contaminar por um pseudo-humanismo que mais prejudica que beneficia os nossos pacientes; infelizmente muitos técnicos ainda fazem essa confusão. Desculpa em plena madrugada tão extenso relato, mas achei necessário para que tenhas uma melhor compreensão dos fatos. Muita luz!

            - Bom dia. Fico feliz e grato por ter esse diálogo tão necessário quanto primordial para a melhoria da qualidade dos serviços prestados pela equipe do hospital... vou falar com a diretoria para nos reunirmos com a equipe para identificarmos aonde precisamos melhorar as nossas ações. Darei retorno sobre nossa reunião.


Publicado por Sióstio de Lapa em 27/10/2015 às 00h59


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr