Meu Diário
11/08/2016 08h08
A VERDADE DE ABIGAIL

            Abigail era a irmã de Jeziel, filhos de pais judeus, tementes à Deus, cumpridores da lei de Moisés. Seu pai, Jochedeb, havia sido flagelado e morto por reagir à injustiça de gestor romano. Seus filhos, Abigail e Jeziel, ficaram assim desgarrados e deserdados dos bens da família, pois esta se dissolveu. Abigail foi acolhida por outra família judia e Jeziel foi condenado a servir como escravo nas galés até a morte.

            Como Jeziel teve oportunidade de tratar de um oficial romano que viajava e adoeceu em seu navio, com afeto e determinação, este jovem aristocrata da corte romana, logo que se recuperou, decidiu premiar os cuidados que recebera dando a liberdade a Jeziel. Para isso ele convenceu o capitão do navio a deixar Jeziel no primeiro porto que ancorassem e o escravo deveria descer para não mais voltar e que ele deveria assumir um novo nome para não ser descoberto a infração da lei romana que não podia ser desconsiderada por nenhum oficial.

            Jeziel foi acolhido pelos homens do “Caminho”, instituição recente que estava tomando forma sob a liderança de Pedro e inspirada nas lições de Jesus. Jeziel adotou o nome de Estêvão, e logo que teve contato com o Evangelho do Cristo, percebeu toda a Verdade que ele continha e que sintonizava com o fundo da sua alma. Passou a estuda-lo profundamente e a divulga-lo na praça pública, mesmo correndo o risco de ser punido pelos sacerdotes do Templo, os mesmos que causaram a morte por crucificação, ordenada pelo procurador romano Pôncio Pilatos.

            Foi isso que aconteceu, logo Estêvão estava sendo interrogado rispidamente por Saulo de Tarso, um jovem e arrogante doutor da lei, que sem saber namorava a irmã de Estêvão (Jeziel), Abigail. Mesmo que Saulo comentasse com a moça a ousadia de um jovem seguidor de Jesus, que colocava argumentos para o desautorizar frente a lógica divina e à multidão que ouvia, e que ele deveria ser punido. Abigail procurava ser conciliadora, pedindo ao namorado paciência e que a ajudasse a encontrar seu irmão Jeziel que fora condenado às galés. Saulo concordava em fazer todo esforço para encontrar o irmão da noiva, pedindo informações nos diversos portos por onde passavam navios conduzidos por escravos acorrentados nas galés.

            Finalmente, Saulo chegou ao cúmulo de condenar Estêvão à morte pelo apedrejamento, onde ele mesmo participou. Somente nos momentos finais, nos estertores de Estêvão, é que Abigail reconheceu à distância que se tratava do seu irmão Jeziel. Correu até o moribundo, que de forma serena agradeceu a Deus ter reencontrado a irmã, perdoou ao impetuoso doutor da lei e reconhecendo nele um forte defensor de Deus, mesmo que equivocado, acatou a união de sua irmã com o seu algoz.

            Após o grave estremecimento da relação entre os noivos devido a morte de Estêvão em tais circunstâncias, Saulo voltou a procurar Abigail depois de certo tempo, disposto a superar os preconceitos e a receber como esposa. Porém encontrou-a doente, profundamente debilitada fisicamente, mas fortalecida espiritualmente. Ela falou que sentiu muito a sua falta e que definhou de tanta saudade. Mas conheceu um velhinho respeitável de nome Ananias que lhe falou sobre Jesus, que lhe deu a conhecer as luzes sagradas da nova revelação. Desde esse momento, revelou, passou a compreender melhor o noivo e conhecer melhor a própria situação.

            As palavras da noiva caiam-lhe no coração como gotas de fel. Nunca experimentara dor moral tão aguda. Verificando a sinceridade natural, o carinho doce daquelas confissões, sentia-se pungido de acerbos remorsos. Como pudera abandonar assim, a escolhida da sua alma, esquecendo-lhe a fidelidade e o amor? Onde encontrara tamanha dureza de espírito para esquecer deveres tão sagrados? Agora vinha encontra-la exânime, desiludida de realizar na Terra os sonhos da juventude. Além de tudo, o carpinteiro odiado parecia tomar-lhe o lugar no coração da noiva adorada. Naquele momento, não experimentava apenas o desejo de lhe arrasar a doutrina e os adeptos, mas sentia ciúmes dEle na alma caprichosa. De que poderes podia dispor o nazareno obscuro e martirizado na cruz, para conquistar os sentimentos mais puros da noiva carinhosa?

            Abigail reunia as últimas forças para, paradoxalmente, tentar confortar o noivo: não chores, Saulo, a morte não é o fim de tudo. É preciso morrer para vivermos verdadeiramente. Jesus nos ensinou que a semente caindo na terra fica só, mas se morrer dá muitos frutos!... Não te rebeles contra os desígnios supremos que me arrebatam do teu convívio material! Se nos uníssemos pelo matrimônio, talvez tivéssemos muitas alegrias; teríamos um lar com os nossos filhos; mas destruindo nossas esperanças de uma felicidade passageira na Terra, Deus nos multiplica os sonhos generosos... Enquanto esperarmos a união indissolúvel, auxiliar-te-ei de onde estiver e te consagrarás ao Eterno, em esforços sublimes e redentores...

            Saulo se mostrava surpreso com tamanha conscientização da vida espiritual... Quem te deu semelhantes ideias, perguntou o jovem cheio de angústia.

            Esta noite, respondeu a jovem, depois que partiste, senti que alguém se aproximava enchendo o quarto de luz. Era Jeziel que vinha ver-me... Anunciou-me que Deus santificava os nossos propósitos de ventura, mas que eu seria leva ainda hoje à vida espiritual. Ensinou-me a quebrar o egoísmo de minha alma, encheu-me de bom ânimo e trouxe-me a grata nova de que Jesus ama-te muito, tem esperanças em ti!... Refleti, então, que seria útil entregar-me jubilosa às mãos da morte, pois, quem sabe, se ficasse no mundo não iria perturbar a missão que o Salvador te destinou... Jeziel afirmou que nós te ajudaremos de um plano mais alto! Por que, então, deixarei de ser tua companheira?... Seguirei teus passos no caminho. Levar-te-ei onde se encontrem nossos irmãos do mundo, em abandono; auxiliarei teus raciocínios a descobrir sempre a Verdade!... Ainda não aceitaste o Evangelho, mas Jesus é bom e terá algum meio de nos unir os pensamentos na verdadeira compreensão!...

            O conhecimento dessa história me leva a refletir sobre o meu comportamento e compreensão da vontade de Deus. Saulo de Tarso também queria fazer a vontade de Deus, mesmo que de forma equivocada, no início. Penso algumas vezes se também não estou agindo de forma equivocada na construção da família universal, gerando tanto sofrimento ao meu redor. Mas a minha consciência não me acusa, todos sabem das minhas intenções, do meu comportamento, e se ficam perto de mim e geram expectativas que não podem ser realizadas, se não conseguem eliminar o egoísmo de seus corações, a culpa passa a não ser minha.

            Abigail parece ser a porta-voz da verdade de Deus, superando os desejos que cada mulher possui, dos sonhos do casamento e viver ao lado do esposo. Reconhece que o companheirismo pode ser feito mesmo com a morte. Conseguiu quebrar o egoísmo de sua alma, aprendeu a Verdade que estava ao seu lado, se recolhe em seu destino e aceita a missão que o outro tem que realizar com abnegação.

            Esta é a maior dificuldade que encontro, na missão que tenho na consciência e que tento passar às minhas parceiras, mas nenhuma, como Abigail, conseguiu absorver essa Verdade de forma tão magnífica como ela fez.

            Parabéns, Paulo de Tarso, pela companheira que conseguistes encontrar, mesmo que Saulo não tivesse conhecimento da dimensão da Verdade que ela já possuía e tentava te iluminar.


Publicado por Sióstio de Lapa em 11/08/2016 às 08h08


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr