Meu Diário
06/11/2016 00h59
DIALÉTICA ERÍSTICA

            Não conhecia essa forma de dialética e por isso posso ter sido vítima, e ainda ser, de seus efeitos. Não imaginava, mesmo que intuísse, que poderia existir a arte do debate malicioso, que é o que caracteriza a dialética erística.

            Os grandes filósofos do passado também se ocuparam em desmontar as picuinhas, sem que isso os afastasse de suas cogitações mais altas. Mas eu jamais percebi esse detalhe que estava por trás de uma luta de ideias, uma estratégia consciente de nocautear o adversário que trazia uma verdade profunda.

            Outra falsa compreensão que eu nutria era que da discussão pudesse nascer a luz, mas parece que fazem nascer apenas falsas certezas e decisões catastróficas. Fica aqui um conselho importante, a dialetação consigo mesmo, na sinceridade de uma investigação, até o momento de ficar seguro que as próprias opiniões não expressam apenas o desejo egolátrico de impor as preferências pessoais, mas revelam algo da natureza das coisas e do estado dos fatos.

            Geralmente, um homem mais gesticula e dramatiza em defesa de suas ideias, quanto menos está seguro delas por dentro, por não havê-las examinado bem.

            A capacidade de argumentar, por necessária que seja nas circunstâncias práticas da vida intelectual, é habilidade menor e desviada em relação ao perceber e intuir.

            Até a prova, no sentido da demonstração apodítica, é apenas serva e discípula da verdade intuída, que mais vale saber sem poder provar do que produzir um milhão de provas daquilo que, no fundo, não se intui de maneira alguma.

            No mais das vezes, a simples afirmação direta daquilo que se enxerga tem mais forças que muitos argumentos. Contra as tentações do erro e da fantasia não há outra arma senão dizer a verdade, com tal clareza, com tal precisão, que nenhuma finta, nenhum rodeio, nenhum jogo de cena ou artifício de palavras possa prevalecer contra ela.

            Essa clareza se obtém com um tremendo esforço de atenção que é quase um exercício ascético. Olhando fixamente para dentro do seu coração, um homem lê o que está inscrito na sua consciência íntima, como palavras de um texto supremamente auto evidente. Ao subir para a periferia da mente – onde estão depositadas, como redes superpostas, a gramática do idioma pátrio, as regras de estilo, os usos do vocabulário comum, os esquemas argumentativos padronizados e as exigências da moda -, as palavras do discurso íntimo se embaralham, entrando por automatismo nesses canais e arranjos pré-moldados que as desfiguram e as afastam infinitamente do significado originário. Então é preciso mergulhar de novo e de novo, até que a imagem do discurso interior fique tão nítida na memória, que as formas da linguagem externa se amoldem a ela, como meras vestimentas, sem deformá-la ou incomodá-la.  

            Esse é todo o trabalho do autêntico escritor: dizer exatamente o que percebeu desde o centro do coração, afeiçoando o discurso ao conteúdo intuído, sem que este se deixe arrastar pelas exigências daquele. Essa é também sua única força: ela sobe com um impulso avassalador que rompe os muros da indiferença, rasga as máscaras do fingimento e demole a fortaleza de palha da tagarelice.

            Talvez por pressentir essa força é que o adversário maldoso busca sempre desviar-se  do centro das questões para algum detalhe miúdo e periférico que possa, bem explorado, dar margens a controvérsias sem fim; ou, o que dá na mesma – colocar alguma objeção sabidamente tola, mas que não possa ser contestada sem longas e tediosas explicações; ou ainda, obrigar-nos mediante resistências fingidas, às vezes sublinhadas com emocionalismo teatral, a repetir mil vezes nosso discurso sob mil formas diferentes, descendo a exemplos e detalhes cada vez mais elementares, até a exaustão. Ele sabe que, quanto mais tivermos de nos gastar no esforço de provar ninharias, mais excitado ficará o nosso cérebro e mais longe estaremos do centro do nosso coração. É este o seu verdadeiro propósito: tornar-nos iguais a ele, fazer de nós uns sonsos tagarelas irritados, maliciosos, revoltados, cínicos, sem consciência nem inteligência. Uma vez neutralizada a diferença qualitativa que era nossa única superioridade, ele pode nos vencer pelo mais simples dos expedientes: reúne meia dúzia de comparsas e nos esmaga pela força do número.

            Ir ao centro já é difícil. Ir e voltar muitas vezes, velozmente, é uma habilidade que não se conquista sem décadas de treino, e o melhor dos treinos é lutar contra nossas próprias mentiras. Por isto, em geral, o superior de uma ordem religiosa proíbe os noviços de entrar em disputa com o argumentador mundano, pelo menos até estar seguro de que não se perderão no caminho entre o coração e o mundo.

Mais vale, as vezes, a verdade muda, conservada no fundo da alma, mesmo na linguagem pessoalíssima de um sonho, de uma imagem, do que sua expressão clara e distinta em termos lógicos, a qual, por perfeita que seja, há de ser alvo de mal entendidos tão logo caia no mundo, e tornar-se objeto de controvérsias tediosas que reduzirão a cinzas o fogo da sua intuição originária.

            Somente um longo aprendizado da concentração habilita o homem a sair imune dessas controvérsias, de modo a poder retornar, sempre que queira, àquele centro de si mesmo, àquela fonte viva onde a alma e a verdade se interpenetram. Para quem não esteja seguro de possuir essa via de retorno, os combates de argumentos são uma dispersão fatal no mundanismo.


Publicado por Sióstio de Lapa em 06/11/2016 às 00h59


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr