Meu Diário
08/01/2017 02h54
ESQUIZOFRENIA E ASSISTÊNCIA (I) – VALENTIM GENTIL FILHO (06)

            - (M) Voltamos ao vivo com o psiquiatra Valentim Gentil Filho. Antes da pergunta da entrevistadora, eu queria saber o seguinte: o senhor disse que todos os distúrbios mentais causam sofrimento, mas quem mais sofre é o portador de esquizofrenia. Por que?

            - (V) Não, eu acho que quem mais sofre é quem tem aquele diagnóstico seja qual for. Depressão é muito sofrida. Esquizofrenia, algumas formas de esquizofrenia são compatíveis com uma vida razoavelmente normal. As pessoas se adaptam e algumas pessoas com esquizofrenia sabem que tem esquizofrenia, mas ou é uma forma atenuada ou elas convivem com isso de uma forma menos sofrida. Esquizofrenia não quer dizer nada, na verdade, provavelmente sejam várias doenças,

            - (M) Então esta frase foi indevidamente atribuída ao senhor, não é assim...

            - (V) De que quem mais sofre é quem tem esquizofrenia?

            - (M) É.

            - (V) Não, eu não devia ter falado isso. O que eu realmente vejo é que a gente usa essa palavra, que é uma palavras pesada, que as vezes o paciente não quer, inclusive receber este diagnóstico, porque tem toda uma conotação, mas basicamente eu quero dizer, é uma doença mental grave, para a qual não sabemos nem a causa nem temos a cura.

            - (E) Eu queria saber a partir dessas experiências do sofrimento psíquico, porque os homens sofrem? Que motivo levam eles a sofrer? É por amor que se sofre, por vaidade, por desamparo...

            - (V) Tem muito mais, né? Faz parte da experiência humana sofrer... você como psicanalista tem muito melhor condição de utilizar os conhecimentos que a gente tem a respeito disso. Eu entendo que o sofrimento não é problema psiquiátrico, que é problema da humanidade, e nem todo sofrimento tem a ver com questões médicas. Então, eu fico muito restrito ao falar de sofrimento decorrente de doença mental, dos transtornos mentais. Mas eu tenho certeza que as pessoas sofrem por verem outras pessoas sofrendo, por não conseguirem realizar seus projetos de vida, por sentirem frustrações por questões afetivas, por perceberem iniquidades e ao longo da história perceberem o quanto de injustiça foi cometida, sofrer por solidariedade... eu não diria que sofrer é um problema médico nem psiquiátrico, eu acho que é uma coisa de empatia, de solidariedade, e quem não sofre é que eu acho que é o problema. Na verdade, se é que existe o psicopata frio, insensível, que não sofre... eu não sei se existe, porque eu acho que no fundo, no fundo, até os indivíduos que a gente cataloga como psicopata, algum grau de sofrimento eles têm.

            - (E) Dr. Valentim, mas o sofrimento é também quase que um convite para a criação, e a criação é uma forma de enfrentar, de superar o sofrimento, não?

            - (V) Então, se tiver um limite esse sofrimento, né? Pra mim, por exemplo, escrever um artigo científico é um enorme sofrimento. Eu não entendo vocês jornalistas, por exemplo. Pra mim sentar na frente de uma telinha e ficar digitando um texto é um sofrimento que...

            - (E) Que pra nós escrever é uma forma de se livrar de certo sofrimento fazendo isso...

            - (V) Vocês sabem como fazer isso eu por exemplo quando sento para escrever eu sofro até o fim.

            - (M) Vinícius de Morais é quem dizia que ele... o bom poeta é capaz de sofrer e que ele tinha deixado a poesia porque ele era muito feliz. Faz um pouco de sentido. Poetas sofrem mais.

            - (V) Mas sofrer e felicidade são coisas diferentes.

            - (E) Sim, mas são parentes.

            - (M) Segundo o que diz, o poeta é a figura mais sofrida...

            - (V) E quem nunca sofreu por amor, nunca viveu.

            - (M) Exatamente.

            - (E) Mas as pessoas que lhe procuram não estão ali porque sofreram por amor, porque elas tiveram perdas...

            - (V) Se tiverem esse tipo de queixa, e elas não tiverem uma síndrome médica, eu provavelmente vou encaminhar para terapia, ou vou encaminhar para outras formas de lidar com o sofrimento.

            - (E) Que tipo de terapia o senhor...

            - (V) Aí depende do que eu sentir que a pessoa tem potencial de psicanálise, de terapia cognitiva, eventualmente até terapia de apoio...

            - (E) Quais os critérios que você utiliza para encaminhar para uma análise, para uma terapia cognitiva.

            - (V) Para terapia cognitiva são coisas mais objetivas, análise é um potencial que a pessoa tem de se conhecer mais profundamente para investir e ter a curiosidade, inclusive, o desejo de se aprofundar. Eu encaminho rotineiramente para análise quem eu acho que pode se beneficiar desse investimento de tempo, dinheiro e de desafio intelectual.

            - (E) O senhor não considera o transtorno mental, o resultado de uma doença social, um problema social.

            - (V) Alguns sim...

            - (E) Com a origem da reforma da assistência psiquiátrica com a qual o senhor não concorda, tem as suas divergências... o senhor acha que o transtorno mental deve ser tratado com o médico, não com a assistente social.

            - (V) Eu acho que nem os assistentes sociais acham que os transtornos psiquiátricos devem ser tratados por assistentes sociais. Pelo menos os assistentes sociais que eu conheço. Eu não estou dizendo que não existem componentes sociais, nem que não existem componentes psicológicos. Eu estou dizendo que se configura uma síndrome médica, em que a gente tem a capacidade de prever mais ou menos a evolução e tem recursos terapêuticos... para aliviar o sofrimento da pessoa, para trazê-la de volta para o funcionamento razoável, próximo do que seria possível para ela, não fazer isso é omissão de socorro. Reforma Psiquiátrica é um nome infeliz, porque reforma urológica, cardiológica, ginecológica, não cabe né? Reforma do modelo assistencial... o Brasil é desde mil novecentos e oitenta e poucos, vítima de um experimento social.

            - (E) O senhor considera assim.

            - (V) Não só eu considero assim. Este experimento social aconteceu nos Estados Unidos, na Inglaterra, aconteceu na França, aconteceu na Itália e foi importada diretamente da Nicarágua para o Brasil em mil novecentos e oitenta e pouco. Isso está escrito nos livros da luta antimanicomial, que não é antimanicomial, porque eu sou antimanicomial. A luta não é antimanicomial, a luta é anti-psiquiatra, também está escrito nos livros deles, que essa reforma é uma libertação da identidade, é uma forma de tirar o arcabouço teórico da psiquiatria.

            - (M) O que propõe os autores dessa tese? Desativação?

            - (V) Isso tem uma história longa que vem da reforma sanitária do pós guerra. E a psiquiatria como a prima pobre da medicina na ocasião, tinha pouquíssima eficácia, foi a cabeça de ponte de um ataque a medicina. Isso é uma coisa muito bem documentada na reunião de almahaten, na antiga União Soviética, pelo pessoal da reforma sanitária, voltada para cuidados primários, isto está acontecendo agora com os médicos de Cuba pra fazer o atendimento em cuidados básicos de saúde... faz parte de uma visão da saúde de uma coisa que é muito mais ampla que a medicina, que a medicina é uma coisa de elite, onde os médicos são agentes da normalização, quando, sabe, é toda uma posição político-ideológica que vocês conhecem...

            - (E) Que determina a política oficial, governamental.

            - (V) Determina a política implantada no Brasil desde 1.985. o problema é que essa reforma psiquiátrica, entre aspas, ela veio com uma cartilha pronta, coordenada por um indivíduo da OMS, da OPAS e implantada por uma equipe que está no ministério da saúde até hoje, 1.985. Que fazia parte dos trabalhadores em saúde mental. Eu não estou falando nada que eu não tenha documentos para corroborar. Isso não é o que a população precisa em termos de uma reforma do modelo assistencial. Precisamos de cuidados primários? Claro. Precisamos qualificar os médicos generalistas para fazer o diagnóstico psiquiátrico? Claro! Nós temos que treinar os enfermeiros, os psicólogos, os assistentes sociais, os terapeutas ocupacionais, os fisioterapeutas para atender as necessidades das pessoas com transtornos psiquiátricos? Certamente! Agora não podemos acabar com o ambulatório psiquiátrico dizendo que o ambulatório é concentrador de recursos, não podemos pagar 10 reais a consulta no SUS por um atendimento psiquiátrico, que o prefeito não pode contratar atendimento psiquiátrico, nós não podemos fechar 85 mil leitos psiquiátricos e não colocar nada no lugar e nós temos 40 pessoas em pronto socorro ou esperando vaga para internação, nós não podemos pensar que os Centros de Atenção Psicossociais vão substituir os ambulatórios, pronto socorro, hospitalização, porque o CAPS III que seria o que poderia fazer isso, existe em quantidade ínfima perto dos milhares de leitos que foram fechados... não podemos fazer a distribuição de recursos exíguos da saúde mental que é feito a décadas com critérios que absolutamente são ridículos, de gastar fortunas com determinado produto em detrimento de todo armamentário terapêutico... tem um monte de coisas nisso na reforma da assistência a saúde mental no Brasil que precisaria de uma auditoria e de uma reformulação.

            - (E) Os números que o governo apresenta, que o ministério da saúde apresenta, são positivos, qual o sentido disso?

            - (V) Vamos falar só de saúde mental...

            - (E) Os números de atendimentos, os números de internação...

            - (V) Não tem o que enganar, hoje quando eu chamo uma ambulância na rua para ver a dona Maria que fica gritando a noite, debaixo de chuva na rua que moro, nos Jardins, e vem uma ambulância e dois carros da rádio patrulha da polícia, e eu falo, olha essa moça, essa senhora está aqui na chuva, ela vai pegar uma pneumonia, ela está gritando, ela pode ser atropelada, ela está obviamente psicótica, eu posso ver que ela está precisando de uma internação para sair da fase aguda, não para ficar morando em manicômio... o moço da ambulância, os policiais, dizem: olha doutor, não adianta, essa é a Maria, ela está brigando porque roubaram o cobertor dela. Se eu levar no pronto socorro eles não vão ter o que fazer com ela, eles provavelmente vão dar um remedinho pra ela e devolvem e de novo ela vai voltar pra cá. Tem 500 dessas Marias nas ruas de São Paulo. Esse é o sucesso do nosso modelo assistencial. Todos os 60% de pessoas com doenças graves de depressão e outras coisas assim sem atendimento, esse é o sucesso. Se você ao longo de 30 anos aumentou bastante o número de atendimentos, não fez mais do que sua obrigação, a população aumentou de 145 para 200 milhões. O que você tem hoje é... eu não sei quais são os dados hoje da prefeitura de São Paulo, mas é assim, você tem gente no chão do pronto socorro por falta de leito para internar, você tem os hospitais continuando a ser fechados, você tem agora a prefeitura de São Paulo fechando mais leitos... quer dizer, o que as pessoas pensam que... eu estou falando de leitos psiquiátricos para internar o sujeito para deixar no manicômio como nos anos 60? Não! Eu conheço o livro da Daniela, “O Holocausto”, um ótimo livro. Eu conheço o livro de fotografias que deu origem a esse de Barbacena... isso não tem nada de psiquiatria. Isso é uma falta de solidariedade da sociedade. O que tem é uma desassistência fenomenal e a gente tem recursos terapêuticos.

            - (M) Preciso interromper e depois vou passar a palavra ao entrevistador. Vamos para mais um intervalo e voltamos em seguida para o último bloco da entrevista com o psiquiatra Valentim Gentil Filho.


Publicado por Sióstio de Lapa em 08/01/2017 às 02h54


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr