Meu Diário
09/01/2017 07h19
DSM E SOFRIMENTO (I) – VALENTIM GENTIL FILHO (07)

            - (M) Estamos de volta para o último bloco da entrevista com o psiquiatra Valentim Gentil Filho.

            - (E) É intrigante, depois de 20 anos da reforma psiquiátrica, e as reformas entre aspas, como o senhor diz, e as coisas estarem tão evidenciadas em diferentes países, você tem aqui no Brasil um grupo tão diferentemente posicionado em relação ao mesmo tema, quando na verdade o que se quer é o bem do paciente e da família. Por que essa divisão tão atávica?

            - (V) Eu acho que são concepções diferentes, são concepções político-ideológicas, às vezes técnicas diferentes. Quando eu converso com algumas dessas pessoas que são responsáveis pelo que está acontecendo no Brasil, porque elas fazem parte dos assessores do ministério da saúde desde o início, eu acho que boa parte delas são muito bem intencionadas, e acho que a gente concorda em algumas coisas. Eu concordo que a gente não deve ter hospitais manicomiais. Eu acho que asilo é uma necessidade, em vez de deixar a pessoa morar na rua, não é porque ela é doente mental que ela não tem o direito do asilo. Assim como o velhinho tem o direito ao asilo, uma pessoa com limitação de autonomia que não tenha aonde morar e que a família não tem mais como receber, e as famílias não tem como receber boa parte dessas pessoas, elas precisam de algum tipo de assistência asilar. Asilar no bom sentido, de proteção.

            - (E) Isso não existe.

            - (V) Não, porque se confundiu hospital, asilo, manicômio, ficou uma confusão. O que tem, no entanto, são algumas pessoas que são um pouco radicais demais para o meu gosto. Que são essas pessoas que são mais ideólogas do que atuam na prática. Então, por exemplo, quando se diz assim, a luta é antimanicomial pra dizer que não existe diferença entre manicômio e um hospital psiquiátrico qualquer, essa pessoa está tomando uma postura anti-psiquiátrica, anti-médica, porque o hospital é um equipamento médico. Então, manicômio judicial não é um bom termo também porque manicômio quer dizer hospital de loucos, essa é a definição da palavra, manicômio, hospital de loucos, do grego. Então, você tinha que ter um hospital para doentes com determinadas patologias, pois boa parte das pessoas que estão internadas em hospitais psiquiátricos não são loucas, não estão loucas. E uma parte dessas pessoas que entram sendo loucas, saem recuperadas. Então, você precisa de internação aguda. Como é que você faz isso na cabeça de alguém que está comprometida há 30 anos com um projeto enlatado, que veio diretamente da Itália trazido por alguém que supostamente é um grande amigo e defensor do Brasil, que fez a experiência dele primeiro na Nicarágua, depois fez uma reunião em Caracas, depois escreveu um livro chamado biblioteca de identidades, depois dirigiu a Organização Mundial de Saúde nessa área, e que veio para o Brasil inúmeras vezes, que treinou nossas equipes e depois é obrigado a dizer que não, na verdade não devia ter fechado os hospitais antes de ter criado outras alternativas. Então, tem uma questão político-ideológica que é difícil vencer com a técnica.

            - (E) Professor, eu queria voltar um pouquinho na questão do sofrimento, porque o luto causa um sofrimento. A nova bíblia da psiquiatria, que foi publicada agora em maio, a atualização dela, ela inclui o luto ali como uma possibilidade de sintomas de depressão depois de duas semanas se a pessoa mantiver o sintoma por duas semanas. A minha dúvida é, a gente não estaria aí de novo medicalizando o sofrimento? Porque antes o luto não entrava no manual.

            - (V) Eu acho que as pessoas religiosas vão se ressentir de comparar DMS-5 com bíblia. Eu tenho enorme respeito pela Bíblia e não tenho tanto respeito assim pela DMS-5. A DMS-5 é Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders, um manual, 5ª edição, que é feito como um manual estatístico de cada uma catalogação de diagnósticos para fins de seguro saúde, para determinadas pesquisas epidemiológicas, para facilitar a comunicação dentro do sistema de saúde americano, que se tornou um ganha-pão também para a sociedade psiquiátrica americana porque eles vendem isso ao mundo inteiro como se fosse a bíblia da psiquiatria, que não é. É um livro onde são tomadas decisões por tarefas a um grupo de pessoas que são decisões políticas...

            - (E) É seguida no mundo todo...

            - (V) Não, não é. Não deve ser seguido. Eu não tenho, não recomendo, meus alunos não leem se depender de mim, porque aquilo tem finalidade específica. Tem livros para aprender psiquiatria que são muito melhores que aquilo. Então, eu sou obrigado a reconhecer, no entanto, a influência que o DMS-5 tem, e que nessa necessidade de catalogar comportamentos humanos, as pessoas extrapolam e acabam fazendo besteiras. Tinha uma época que homossexualismo era catalogado como transtorno psiquiátrico e deixou de ser catalogado porque os psiquiatras homossexuais conseguiram fazer um movimento para que isso não fosse aceito. Você chega numa situação em que depende de qual a pressão interna que você tem política, para você ter um diagnóstico ou tirar um diagnóstico. Então, tem uma porção de enganos. Ela teve algumas vantagens. Ela facilitou que os psiquiatras americanos, que não acreditavam em nenhum diagnóstico, pudessem se comunicar, porque a história da DSM começa numa época que nos Estados Unidos tudo era muito com reações emocionais. E aí, no tempo da Menninger, você não fazia diagnóstico psiquiátrico. Você fazia diagnóstico da dinâmica daquele paciente. E aí, haja capacidade de abstração para você poder fazer um estudo epidemiológico. Mas, vamos falar a verdade, existem lutos e lutos. Se você começa com uma reação de luto, essa reação de luto se torna prolongada demais, ou incapacitante demais, talvez não seja só luto, talvez o luto tenha sido o desencadeante de alguma coisa. As pessoas falam de luto patológico.

            - (E) Mas duas semanas é um tempo...

            - (V) Porque duas semanas e não duas semanas e meia, ou quatro semanas, ou uma semana e meia... porque essas decisões são tomadas por um comitê. Agora, pega por exemplo, depressão pós parto. A partir de quando você vai dizer que aquilo é uma depressão pós-parto? Por quanto tempo ainda você pode fazer o diagnóstico de depressão pós-parto, sabendo que no pós-parto, a mulher tem 20 vezes mais risco de ter depressão do que em qualquer outra fase da vida dela. E se não atendida, ela e o filho correm risco, e tem tratamento. Então, tem algumas coisas que são arbitrárias demais, algumas são arbitrárias de menos, no fundo tudo é arbitrário. O diagnóstico do médico é arbitrário. Depende do arbítrio de uma profissão médica.

            - (M) A gente vai chegando ao fim do programa, queria passar a palavra ao entrevistador.

            - (E) Queria aproveitar essa última chance para fazer uma pergunta muito rápida. Você falou muito que a maconha numa fase de estabelecer sinapses atrapalha. E os fatores de proteicos? Existe programação fetal da doença mental?

            - (V) A gente conversando com geneticistas, e você deve conversar bastante com eles, a gente está chegando à conclusão que a coisa é complexa demais, e que o ambiente parece ser determinante para a vulnerabilidade constitucional, não é? Então, gêmeos idênticos com supostamente o mesmo DNA, expressam diferentemente os seus gens e portanto não tem nada de idênticos. Mas se você pega pessoas com transtorno bipolar você tem uma concordância de 180%. Já quando você pega outras patologias, você vai tendo cada vez menos concordância. São fatores epigenéticos decorrente do ambiente? É alguma coisa que aconteceu na situação intrauterina? Provavelmente tudo isso... Quanto tempo a gente vai levar para entender isso tudo. Quando eu vejo os meus ídolos de genética agora dizendo, baixe a bola que nós estamos longe de entender como isso funciona, é tudo muito maravilhoso, mas vamos baixar a bola e vamos tentar reconhecer que a nossa ignorância ainda é grande demais. Quando você pega, no entanto, questões de anóxia, mal formação e outras agressões intrauterinas, por exemplo, gripe, viroses fortes no terceiro trimestre, aumentam o risco de esquizofrenia no adulto. Então, se vírus pode fazer isso, que mais pode fazer uma coisa dessa? Ainda mais quando a gente pensa que as nossas doenças são afinal comum de muitos agravantes.

            -(E) Queria fazer uma pergunta um pouco na questão do DSM. A grande crítica que se faz ao DSM é que ele meio que expulsou o sujeito, fazendo com que o homem, paciente ou doente mental, seja alguém que só tem sintomas, e aí vai o médico e ele vai tratar sintomas... como é que você ver isso?

            - (V) Eu acho isso uma lástima, eu acho que médico devia recuperar, principalmente os jovens, eles devem aprender a arte médica, que é milenar. Por exemplo, você como psicanalista usa o conceito de angústia. A maior parte dos residentes não vai usar o conceito de angústia seguindo o DSM-5 porque não tem a palavra na DSM.

            - (E) Não tem angústia.

            - (V) Não tem a palavra. Então ele perde o conceito, e essas questões, elas são transmitidas por gerações. Você tem a palavra para angústia em chinês, hebraico, em árabe, em húngaro, em japonês, em todas as línguas germânicas, uma opressão precordial, com sofrimento presente, que não pode ser substituída por “anxiety”, ansiedade, só que no DSM tem anxiety, não tem “anguish”, angústia. Então, esse é só um exemplo de como você perde a arte, você perde a capacidade de diagnosticar e ajudar pessoas, se você vai muito por coisas excessivamente padronizadas. Lembrando, o DSM tem o seu papel, ele ajuda catalogar, as seguradoras não saberiam como fazer se não tivesse o DSM.

            - (E) Mas o psiquiatra é ensinado a ver de forma crítica o DSM?

            - (V) Eu não entendi.

            - (E) O psiquiatra é ensinado ver de forma crítica?

            - (V) Eu tento fazer isso toda vez que aparece. Por isso que não gosto nem de pensar que isso pode ser chamado de bíblia da psiquiatria.

            - (M) Temos apenas um minuto para pergunta e resposta.

            - (E) Nós falamos de sofrimento humano, falamos do universos das drogas, de extensas plantações de maconha... tem outro submundo? Gostaria de ouvir uma consideração rápida do senhor da indústria farmacêutica. O que o senhor pode contar de assustador nesse território?

            - (V) Eu não chamaria de submundo, porque senão eu teria de chamar a atividade econômica da humanidade toda de submundo. Ela segue exatamente os mesmos princípios de todo o resto. São grandes acionistas, grandes corporações, grandes fundos de pensão que colocam o dinheiro esperando o retorno. Há uns 30 anos atrás, a União Soviética, na época, tinha que importar haloperidol para usar nos prisioneiros políticos, que eram quadros psiquiátricos. E a questão é, como? Eles estão tendo que importar isso da Bélgica para poder usar? Então, a indústria farmacêutica somos nós, os acionistas que esperam retorno dessa coisa toda. Isso funciona na lógica como uma indústria qualquer. Eles não são da universidade, não são humanitários necessariamente, a gente espera que eles sejam éticos.

            - (M) Doutor Valentim, nosso tempo infelizmente se esgotou. Eu agradeço a presença dos entrevistadores, agradeço também ao cartunista convidado e aos telespectadores que nos acompanharam. Agradeço em especial ao doutor Valentim Gentil Filho por essa aula que acaba por nos conceder. Boa semana a todos e até a próxima segunda.

            Assim fica concluída a entrevista com o Dr. Valentim, cujas posições são coerentes com as minhas, principalmente com relação à assistência psiquiátrica brasileira e o uso de drogas e suas consequências. Servirá esses longos textos para respaldar projetos universitários que eu possa fazer no corrente ano.


Publicado por Sióstio de Lapa em 09/01/2017 às 07h19


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr