Meu Diário
27/02/2017 23h59
DESCIDA AO UMBRAL

            O céu e o inferno estão dentro de nossas consciências, conforme o bem ou o mal que fizermos em qualquer dimensão de nossas vidas. Existe o umbral, conhecido por alguns como purgatório, um estágio intermediário entre o céu e o inferno.

            Nossos espíritos estão encarnados aqui na Terra com o objetivo de aprender ou purgar algumas dívidas pelo mal que fizemos. Portanto, aqui é onde está a grande oportunidade de refazermos as nossas consciências. Temos oportunidade de nos esforçar para ficar no céu ou obedecer aos instintos corporais e permanecer estacionado no inferno.

            Esta condição é muito instável, podemos passar do céu para o inferno num piscar de olhos. Lembro de uma história oriental onde um famoso samurai foi procurar um sábio em aldeia distante, pois ele queria saber sobre o céu e o inferno. Depois de muito caminhar ele chegou ao seu destino, encontrou o sábio, e perguntou se ele poderia lhe ensinar sobre o céu e o inferno. O sábio olhou-o de alto à baixo e respondeu com ironia: tú, uma pessoa simplória, malvestida, fedorenta, querer aprender conceitos tão importantes? O samurai sentiu a raiva ferver em sua mente, sacou da espada, levantou-a no ar pronto para decepar a cabeça do insolente sábio. Foi neste momento que o sábio, sem se alterar, apontou o dedo em sua direção e disse: eis aí o inferno! O samurai caiu em si, percebeu que o velho sábio, correndo o risco da própria vida, lhe deu uma excelente lição sobre o que era o inferno: um estado de consciência tomado pelo ódio, raiva, ira, intolerância, conflito, capacidade de destruição, dor e sofrimento moral. Mudou rapidamente de atitude, agradeceu com lágrimas nos olhos tão importante lição que recebera de uma pessoa que não o conhecia e que arriscou a vida para o servir. O sábio com a mesma serenidade, abriu os braços de forma conclusiva e disse simplesmente: eis aí o céu! O samurai percebeu que nesse momento sua espada não estava mais ameaçadora, sentia respeito, compaixão, amor, compreensão, tolerância, harmonia, capacidade de construção e felicidade moral. 

            Eis um bom exemplo de como nossas atitudes em reação a algum incidente em nossas vidas podem nos jogar de forma rápida e às vezes compulsiva, dentro do inferno. Saber permanecer sempre dentro do céu, qualquer que seja o incidente que estejamos vivenciando no momento, é uma das grandes lições que temos que aprender aqui na Terra. É como disse Jesus, transformando o nosso coração, iremos nos sentir como cidadãos do Reino de Deus, mesmo que ao nosso redor exista o inferno.

            Foi o que aconteceu hoje, segunda feira de Carnaval. Fui visitar os bonecos de Olinda, município de Recife-PE, por volta das 13 horas. Os bonecos ficavam no alto, próximo da igreja, mas como existia a folia do Carnaval, não havia como chegar lá de carro. Imaginei que iria enfrentar apenas um longo percurso a pé, mas valeria a pena ter essa oportunidade de ver in loco uma realidade da cultura nacional. Quando comecei a subir com meus companheiros, percebi a quantidade de gente que caminhava, principalmente no mesmo sentido que nós. Não percebemos que a cada momento que subíamos, a quantidade de gente aumentava e chegou um momento que era impossível voltar, pois a massa, pulando e cantando as marchas carnavalescas, era quem impunha o ritmo e a direção do caminhar. Observei nesse momento que estava numa região que poderia ser considerado com toda a propriedade o umbral. As pessoas que estavam ali, a grande maioria, se consideram religiosas e pretendem obedecer algumas regras morais de convivência. Mas nesse momento essas regras eram totalmente esquecidas. As atitudes sensuais eram as mais corriqueiras, regadas ao uso do álcool na forma de cervejas geladas para aliviar o calor, e do roubo de objetos de valor por grande número de pessoas que estavam ali para perpetrar seus ataques. Era como se fosse o tridente dos cães a pinicar a pele dos foliões na forma de perda material. Tudo isso era compensado pela maioria que estava ali nos mais diversos disfarces: padres, freiras, caveiras, piratas, comandantes, anjinhos, mas também tinham os próprios demônios. Não tinha outra saída, não poderia ficar parado ou voltar. Teria que seguir a direção do movimento, arrochado entre as pessoas, andando ou pulando. Resolvi me identificar o máximo possível com aqueles foliões para não deixar parecer uma ovelhinha inofensiva, pois poderia me tornar facilmente o alvo das feras que estavam a nos espreitar.

            Foi assim que de pulo em pulo, de passo em passo, consegui chegar a uma ruela pouco movimentada e voltar para onde cheguei. Faço esses comentários para refletir que, mesmo em meio a tanta volúpia sensual e alcoólica, a minha mente se manteve sintonizada nos princípios espirituais. Não agi de forma sensual, não falei palavras indecentes, não provoquei conflitos, não ingeri drogas de nenhum tipo. A experiência foi de ter passado pelo umbral de forma inesperada, e sem poder auxiliar a nenhum dos que estavam ali, não conseguiriam ouvir nenhuma palavra da espiritualidade maior, mesmo porque o som alto não deixava e se chegasse a ouvir e consciência contaminada não deixava escutar e refletir.


Publicado por Sióstio de Lapa em 27/02/2017 às 23h59


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr