Meu Diário
27/10/2019 00h26
ORAÇÂO E AFLIÇÃO 

           Mesmo sabendo da importância da oração, sempre tenho dificuldade de realiza-la, por esquecimento mesmo. Isso é uma prova que não dou a importância devida. Mas aconteceu um caso comigo em Caicó onde a oração de repente assumiu a sua relevância.

            Sempre corto o cabelo com um senhor idoso, quando tenho necessidade. Neste dia não havia tanta necessidade, mas como meu trabalho terminou cedo, resolvi entrar na barbearia e fazer o cabelo. Resolvi também, por curiosidade, fazer a barba. Não havia também a necessidade. Mas a curiosidade venceu a prudência. Podia muito bem ter esperado e fazer a barba quando chegasse em Natal.

            O drama começou cedo, quando o idoso barbeiro terminou o cabelo e começou a barba. Ao sentir a proximidade daquela navalha afiada no meu pescoço, de imediato veio á minha mente a necessidade de fazer a oração. Sempre tenho vontade de fazer orações regulares com palavras bem concatenadas dirigidas ao Pai. Nunca consegui fazer isso a contento e muito menos nessa ocasião. Ai foi que a minha mente não encontrava palavras. Só vinha na minha mente as pequenas frases... “Pai, me ajuda!”, “Pai, me socorre!”. 

            Sentia a lâmina desfilar pelas áreas frágeis do meu pescoço e ficava a pensar: tenho um cachorro idoso em casa, que treme frequentemente devido a idade, e se esse barbeiro idoso também tremer e me cortar? Mas, ainda vinham pensamentos piores: sei que tem gente que sem motivos aparentes entra em surto psicótico e machuca quem está perto. E se o barbeiro entrasse em surto? Mas, ainda vinha pensamento pior do que estes: sei que a mente pode captar pensamentos pela telepatia e o pensamento de uma pessoa pode influenciar outra pela hipnose. E se esses meus pensamentos influenciassem a mente do barbeiro para ele fazer aquilo que eu temia, dar um simples corte na minha garganta e, com certeza, eu não levantaria jamais daquela cadeira.

            Enquanto a minha mente fervilhava com esses pensamentos misturados com os fragmentos de oração, o meu corpo queria responder com rigidez. Não podia deixar essa minha contração muscular ser aparente, pois sei que os cachorros quando percebem que uma pessoa estar com medo aí é que eles ficam mais valentes. 

            O coração queria acelerar, mas também aceleraria a respiração, e assim o barbeiro perceberia minha situação emocional. Precisava controlar os pensamentos catastróficos para não influenciar no ritmo do coração, mas tinha que fazer a oração que era a minha única tábua de salvação.

            A aflição se desenvolvia na minha mente e corpo enquanto a navalha persistente passeava por minha face, sentia mais arranhar do que alisar, muito diferente do alisar do meu estojo de barbear. Foi ai que eu senti a força do arrependimento e a extrema necessidade da prece. 

            Comecei a ficar mais aliviado quando percebi os movimentos finais do trabalho. Mas ainda tinha uma surpresa que eu não esperava. Ele molhou as mãos com um liquido, possivelmente contendo álcool, e alisou o meu rosto com ele. Parecia um lança-chamas incendiando meu rosto. Mais uma vez fiz outra acrobacia física e mental para controlar a rigidez do meu corpo, a contenção de lágrimas e até um grito preso na garganta. 

            Finalmente terminou a tortura. Posso não ter sido competente com a oração mais uma vez, mas fui muito competente com meus controles internos, pois o barbeiro comentou satisfeito: aproveitou bem o momento que chegou a dormir, né? Não iria destruir minha performance contando a verdade, dei simplesmente um sorriso desbotado de alegria, paguei, recebi o troco e sai em direção do mercado, com o rosto ainda afogueado pela brisa que lhe tocava. 

            Querendo aliviar a intensa pressão que acabava de sofrer, aceitei o convite de um senhor para sentar no seu banco para ele engraxar meu sapato, na frente do mercado. Foi quando passou um transeunte e procurou me fazer um favor, pois eu estava com uma camisa branca e iria sujar, dizia ele, o meu rosto estava manchado de sangue. Perguntou se eu tinha feito a barba com o referido barbeiro e confirmei, com o já tradicional sorriso amarelo, que talvez tivesse também vermelho. Ele disse que aquele profissional já era conhecido em retalhar o rosto de quem ia fazer a barba, e certamente eu não era da cidade para ter ido lá. Não quis prolongar a conversa, pois afinal de conta eu até gostava do tal barbeiro, pois sempre me dava um desconto sem eu pedir, quando fazia meu cabelo, alegando que não tinha o que cortar, com muita justiça, por causa da minha careca.

            Agora que estou digitando essa história, vejo como sou resistente com relação a oração. Fiz a oração, desesperado, durante a aflição, mas depois, não mais voltei a orar e agradecer ao Pai por ter saído vivo. 


Publicado por Sióstio de Lapa em 27/10/2019 às 00h26


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr