Meu Diário
29/10/2019 00h28
INSENSIBILIDADE SOCIAL

            Dentro de nossa alma existe a centelha divina que mesmo adormecida pelos instintos da natureza animal sempre tem o potencial de brilhar com menor ou maior força, dependendo da pessoa e das circunstâncias. 

            Vou relatar o caso que encontrei no livro “Francisco Julião – Uma Biografia”, de Cláudio Aguiar. 

            Francisco Julião, parlamentar do Partido Socialista Brasileiro (PSB), denunciava com coragem os crimes cometidos contra os camponeses que se associavam ás Ligas Camponesas.

            Dias depois, por causa de um incidente entre um senhor de terras e a família de camponeses que acabaram de se associar á Liga Camponesa, a polícia, comandada por um sargento, invadiu o sítio do velho Mata, que nenhuma relação ele tinha com o caso.  

            A segunda parte dessa tragédia foi denunciada no Plenário da Assembleia Legislativa de Pernambuco, sob o choro e pesada emoção da mãe dos filhos sacrificados, dona Maria Mata, que se encontrava nas galerias, pois Julião costumava levar os camponeses agredidos pela polícia ou pelos capangas para serem vistos na Assembleia, pela imprensa e pelo público presente.

            Este é o relato do Julião.

            A polícia entra pelo oitão, viola a camarinha, joga os trastes de pernas para o ar, quebra os potes e as panelas de barro a coronhadas, criva as portas e as paredes de balas de fuzil, interroga, aterroriza, espanca, mata as crias miúdas do terreiro. Vai além. Agarra um dos filhos do velho Manuel, passa-lhe pela cintura um laço de corda de agave e o prende á traseira do jipe, que se põe em marcha. A velha mãe de Manuel, neta de índio, de caboclo do mato, paciente, estoica, habituada ao sofrimento, precipita-se atrás do filho, pede, grita, implora, tenta segurá-lo, mas nunca o alcança, porque o jipe aumenta a marcha cada vez mais, até que ela perde as forças e se deixa ficar de joelhos com as mãos para o alto clamando pela Virgem. Manuel tem de aumentar o passo, de correr, de pular, equilibrando-se para não cair, mas, finalmente, cai, e é arrastado por cima de pau e pedra. A roupa se rasga, a pele se esfola, o sangue começa a minar das pernas dos braços, do peito, da cara, mas da sua garganta não sai uma palavra, nem se ouve um gemido. Nada. O sargento, o cabo e o soldado se divertem com a carreira, os saltos e tombos de Manuel, que não resiste mais e perde os sentidos. Não passa agora, de uma posta de sangue, que rola desgovernada por baixo da poeira que o jipe vai levantando pelo caminho afora. Três quilômetros durou o suplício de Manuel. Um soldado, a mando do sargento, cortou de facão a corda e o jipe disparou para a cidade. A missão fora cumprida. Quem iria queixar-se ao delegado se o delegado era o sargento? Veio o velho Mata com os filhos e levaram Manuel numa rede para casa.

            Quando voltou a si estava deitado num leito de folhas verdes de bananeira e trazia as feridas curadas com leite de mangará, que estanca rapidamente o sangue. Mas daí por diante Manuel deixara de ser o mesmo homem. Sararam as feridas e enfermou-se da mente. Mais uma denúncia. Mais um inquérito. O retrato do velho Mata e da família na imprensa. Como sempre, a crônica policial, que é a página social do camponês. E tudo acaba em nada.

            Pela primeira vez tenho diante de mim a velha Maria Mata, como um bronze vivo, que diz tudo pelos olhos e quase nada pela boca. Manuel, porém, não viu nascer o sétimo filho que tomou o seu nome. A Liga levantou para ele uma casa noutras terras. Mas no dia que teve a família agasalhada, foi até o local que dava para a estrada, onde a Liga se reúne, sentou-se, tomou a peixeira e, de repente, abriu a barriga de um lado para o outro, tirou de dentro os intestinos e cortou em pedaços que atirava para longe, até cair sem dar um gemido. Conduzido ás pressas para um hospital, o coração de Manuel deixou de bater na sala de cirurgia (Julião, 1975: 166-167).

            Como ficar insensível a uma situação dessa? Quem está se beneficiando dessa condição macabra de tão perversa? São essas circunstâncias que fizeram eu defender as bandeiras políticas das esquerdas, na minha fase de adolescente e adulto jovem, até agora a maturidade. Uma situação que merece a luta em defesa da dignidade humana, mas o passo seguinte não podemos observar com tanta clareza. Os movimentos socialistas/comunistas conquistam o poder com base nessa luta, muitas vezes com revoluções regadas a muito sangue, e se tornam mais sanguinários que os regimes anteriores.Por isso, conhecendo melhor a realidade, resolvi me tornar um soldado do Cristo, um cidadão do Reino dos Céus, onde não há corrupção ou genocídio na liderança do Cristo.


Publicado por Sióstio de Lapa em 29/10/2019 às 00h28


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr