Meu Diário
06/03/2020 23h17
A CONTA DE EVA

Aos sábados realizavam os zaddikins interessantes reuniões que eram dedicadas aos comentários dos textos sagrados e ao estudo das alegorias e tradições israelitas. Um dia, quando a sala se achava repleta de discípulos e curiosos, o velho zaddik Isaac Lip, homem de grande cultura e invulgar vivacidade de espírito, tomou da palavra e narrou o seguinte:

- Naquele dia Adão chegou ao Paraíso depois da hora habitual e já ao declinar da tarde. Percebia-se em seu rosto sinais de fadiga; em seus olhos pesavam a inquietação e o temor. Intrigada com a estranha demora do esposo, Eva o interrogou um tanto maliciosa e um tanto abespinhada: “Onde estiveste, querido, todo esse tempo? Por que demoraste tanto para chegar?” Com palavras reticentes, meio gaguejantes, desculpou-se Adão e desfiou três ou quatro desculpas que, para um habitante do Éden, não pareciam das mais aceitáveis. Eva não insistiu. Aceitou as evasivas fraquíssimas do esposo e, para evitar discórdias inúteis, deixou-o em paz. Adão, sem mais palavras, deitou-se de bruços sobre o tapete macio da relva e dormiu. Dormiu pesadamente. Eva, sentada a seu lado e nada conformada com a indiferença do companheiro, pôs-se a contar em voz alta, numa obstinação maníaca: “Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove...”

Nesse ponto o eloquente zaddik fez ligeira pausa e interrogou, em tom malicioso, os ouvintes:

- Surge agora, meus prezados amigos, grave problema. Que estava a Mãe Eva contando, naquela tarde, enquanto Pai Adão dormia pesadamente sobre o chão aveludado do Paraíso?

Permaneceram todos em silêncio. O enigma parecia desafiar a imaginação dos mais cultos e dos mais brilhantes talmudistas. O orador insistiu, com ar finório, sem mudar de tom:

- Vamos, respondam. Que estava a Mãe Eva contando?

E como os zaddikins continuassem calados, o mestre do hassidismo, com um sorriso meio velhaco, explicou:

- A nossa boa Mãe Eva, com o cuidado que só o ciúme sabe inspirar, contava as costelas do Pai Adão a fim de apurar se faltava mais alguma.

Esta história, faz parte de uma passagem “hassídica”, encontrada em  Cf. Lewis Browne, op. cit., p. 492, no capítulo: “Doutrina e Histórias Hassídicas”. Mostra que o ciúme faz parte do nosso imaginário, que entra em qualquer tipo de história que tiver presente algum representante da espécie humana. É um empecilho à criação da família ampliada, e muito mais da família universal.


Publicado por Sióstio de Lapa em 06/03/2020 às 23h17


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr