Meu Diário
10/09/2023 04h35
MEMÓRIAS DO JOÃO MACHADO (1)

            Da mesma forma que existem pessoas que pelo seu comportamento são reconhecidas como heróis frente à comunidade, assim são também algumas instituições pelo papel que representam no meio social.



            Dessa forma vejo o Hospital João Machado. Inaugurado em 15 de janeiro de 1957, pelos esforços do Dr. João Machado, inspirado pelo trabalho do psiquiatra Ulisses Pernambucano, com a presença do presidente Juscelino Kubitschek e o governador Dinarte Mariz. Foi projetado para acolher cerca de 200 pacientes que tinham a possibilidade de serem tratados e abrigados por tempo dilatado, com possibilidade de trabalho e instrução dentro da instituição, formando colônia. Dessa forma surgiu o seu nome original de Hospital Colônia Dr. João Machado (HCJM).



            Este foi um serviço prestado pelo governo federal de altíssimo valor humano. Aquelas pessoas que sofriam o peso de suas doenças psíquicas, geralmente sem compreensão e sem tolerância daqueles que conviviam com eles, agora dispunham de uma instituição sólida equipada principalmente por profissionais comprometidos com o melhor acolhimento e capacidade técnica.



            Acontece que estávamos como ainda estamos inseridos dentro de uma região sócio-política carente de recursos e de capacidade de prestar a devida atenção à saúde dos cidadãos, principalmente na área psiquiátrica. A demanda de todo o Estado do Rio Grande do Norte começou a chegar ao HCJM. Os profissionais, sempre vocacionados no princípio humanitário não conseguiam encaminhar os pacientes necessitados para outras instituições, pois essas não existiam. Ou ficavam no HCJM ou ficavam na rua. Por isso esses pacientes, ou trazidos pela família quando essa não podia conter, ou pela polícia quando encontrados na rua, ou encaminhados pela justiça quando cometiam crimes, iam sendo acolhidos no hospital e aí ficavam sem possibilidade de terem alguém ou alguma instituição que os recebessem após a alta.



            Este foi o processo de degradação institucional quando à sua missão de acolhimento e tratamento humanitário aos pacientes psiquiátricos que sofreu o HCJM, pois de uma capacidade projetada para atender cerca de 200 pacientes passou a ter mais de 700. Certamente os profissionais mesmo capacitados, não podiam atender tamanha demanda instalada nos mesmos espaços. Passou a ser um depósito de pessoas doentes e necessitadas de tratamento e que eram chamadas de pacientes, controladas pelos psicofármacos, que felizmente já estavam sendo usados na terapia.



            Foi neste cenário que eu, acadêmico de medicina em 1978, encontrei o HCJM. Logo a minha vocação humanista se associou aqueles heroicos profissionais que tentavam ajudar a conter as dores de tantas pessoas carentes, muitas dessas pessoas sem a consciência de onde estavam e porque eram necessários esses cuidados em espaços restritos. Passei pela disciplina de Psiquiatria e fui aceito como acadêmico plantonista do HCJM. Aprendi a amar esta instituição, pois passei a ver a dicotomia que existia entre ela e a sociedade. Enquanto a maioria das pessoas que não conheciam essa realidade a acusavam de prisão e promover tratamento desumano, eu conseguia discernir a verdade: era uma instituição que pelo heroísmo humanista de seus funcionários, ela também se tornava uma instituição heroica, como jamais eu observei em tantas que que frequentava, desde tribunais de justiça até templos religiosos.



            Tenho hoje orgulho de lembrar desses momentos vividos dentro do HCJM, não pela miséria da falta de apoio que todos nós, pacientes e profissionais sofríamos lá dentro, mas pelas lições do sofrimento vivenciado e compartilhado que ajustou a minha personalidade para o amor ao próximo, para usar os meus talentos para dirimir a dor, como nenhum banco acadêmico me ensinou a fazer.



Publicado por Sióstio de Lapa em 10/09/2023 às 04h35


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr