Meu Diário
13/10/2023 00h01
BELICISMO ESPIRITUAL

            Observemos que a vinda do Cristo da dimensão espiritual para a dimensão material, foi para ensinar a humanidade uma nova forma de comportamento, baseado na existência do Pai universal e no comportamento fraterno entre todos os seus filhos portadores de racionalidade superior.

            Na psicologia coletiva medieval onde o cristianismo se desenvolveu, o belicismo era a primeira interpretação do mundo como palco de luta ininterrupta entre as forças irreconhecíveis do Bem e do Mal, combate ao qual nada e nem ninguém poderia ficar alheio. Isso aparecia através da prova de força entre as divindades pagãs, consideradas demônios disfarçados contra o Deus único da cristandade.

            O embate entre torturadores romanos e mártires cristãos era apenas a manifestação mais visível desse conflito cosmológico. Não eram apenas fatos históricos ocorridos naquele passado, na época da instalação do cristianismo no Império Romano, e sim exemplos eternos da luta entre os bons e os maus, luta que continuava a ocorrer naquela época no passado, ocorre até hoje como as diversas formas de guerra e as que surgirão no futuro. Por causa disso alguns santos deixavam de lado a caridade e piedade cristãs para mutilar e matar adversários da fé.

            Essa incoerência no conflito entre cristão e pagão, entre o bom e o mau, entre o construtor e o destruidor, podemos avaliar do ponto de vista racional. Vamos colocar inicialmente essas três características superpostas em cada um dos oponentes: de um lado o cristão como bom e construtor; do outro lado o pagão como mau e destruidor. Se colocássemos outra característica cobrada dos cristãos como a tolerância (caridade, piedade) e no pagão a intolerância, veríamos que invariavelmente o pagão venceria a contenda. Mas, quando consideramos a coletividade e não o individual, a força do exemplo que cada um mostra com o seu comportamento como modelo para a sociedade vai fazer diferença. O pagão que representa a materialidade, vai dizer: olho por olho, dente por dente; o cristão que representa a espiritualidade vai dizer: ama ao teu próximo como se fosse a ti mesmo. No primeiro caso, veríamos que poderia ocorrer uma “bola de neve”, onde a vingança pelo mal praticado poderia contaminar toda a sociedade e impedir o seu desenvolvimento. No segundo caso, haveria a prática do perdão, onde a pessoa poderia ver o seu algoz como uma pessoa ignorante do mal que estava fazendo e merecedor de alguém que fosse lhe ajudar. A sociedade assim poderia progredir em harmonia fraterna.  

            Com essa perspectiva racional alguns santos abandonaram a carreira militar e deixaram de enfrentar inimigos terrenos, como fizeram Martinho de Tours e Francisco de Assis, para melhor se dedicarem ao combate contra as forças demoníacas que poderiam agir contra seus irmãos e principalmente contra si mesmos.

            A vida cotidiana era vista como uma luta cujo objetivo era a salvação espiritual. Por isso a oração, afirma Santo Agatão, exige esforço semelhante ao dos guerreiros durante uma guerra. Por isso uma das cinco formas de purgação que pode livrar o homem do pecado e salvá-lo é a “guerra contra a tentação”.

            O combate contra as necessidades do próprio corpo é a maior expressão do belicismo psicológico da era medieval como continua sendo útil até hoje. Em nome do controle sobre a fome, os santos submetiam-se a frequentes e prolongados jejuns. Em nome da repressão do desejo sexual, São Bento jogou-se nu sobre moitas de espinhos e São Francisco despiu-se e cobriu-se de neve. Em nome dessa consciência da guerra espiritual milenar, devemos manter a belicosidade com a armadura do cristão como orientou São Paulo e deixar os irmãos cristalizados no mal a cargo do Arcanjo Gabriel e da justiça divina.

            Ave, Cristo! Os combatentes do Bem estão há postos


Publicado por Sióstio de Lapa em 13/10/2023 às 00h01


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr