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FESTA ESQUIZOFRÊNICA
Cândido Justo, Candinho, era um rapaz sonhador e muito romântico. Sempre sonhou que um dia encontraria a mulher dos seus sonhos, casaria com ela e viveriam felizes para sempre. O destino foi parcial com ele, realmente encontrou a mulher de seus sonhos, Tereza Cristina, mas ela possuía uma personalidade tão dura que conseguia anular o romantismo de Candinho e destruir os seus sonhos.
Depois de cinco anos de casados, por motivos que em outra mulher seria contornado sem alterar a relação, Tereza expulsou o estupefato Candinho de casa. No meio da rua, com seus pertences dentro do carro, sem saber para onde ir, Candinho passou a vagar pela cidade. Não poderia voltar para casa, a mulher o ameaçou com toda a clareza que era capaz de matá-lo se isso acontecesse. Não poderia ir nem como visita, não poderia nem telefonar, muito menos se encontrar. Estavam irremediavelmente separados, completo e definitivo.
Candinho estava aturdido. Jamais pensou que isso poderia acontecer. Seu mundo desabou. O romantismo de luto se cobriu. Alugou um apartamento na beira da praia e agora as lembranças do que acontecera e do que poderia ter acontecido, se ambos continuassem juntos, atuavam como a maior das torturas na sua mente, torcia as emoções e o resultado eram lágrimas copiosas. Os poucos amigos que tinham ficaram cada vez mais isolados com as constantes desculpas de não se encontrarem devido a justificativa que ele sempre dava, do trabalho que sempre estava atrasado. Tornou-se uma espécie de ermitão moderno. O único contato que tinha com o mundo era quando ia e voltava do trabalho e quando ficava sentado na varanda do seu apartamento olhando o movimento eterno das ondas.
Mas Candinho tinha outra característica tão forte quanto o romantismo: a perseverança. Ele respeitava a decisão de Tereza, de nunca mais ver ou falar com ele, mas ele não desistia de seus sonhos, de viver a vida toda com ela. O seu amor também possuía a característica divina do amor incondicional, de querer o bem da pessoa amada, mesmo que essa, por qualquer motivo não quisesse viver com ele.  Comprou uma máquina fotográfica profissional, daquelas usadas pelos detetives em seus trabalhos de investigação, e passou a seguir Tereza nos seus momentos de folga, sempre à distância, sem dar qualquer possibilidade dela o perceber. Percebia os detalhes da fisionomia dela com o potente zoom que a máquina possuía. Ficava alegre com sua alegria, ficava triste com sua tristeza. Sentiu a necessidade de comprar um binóculo com a mesma potencia da máquina fotográfica e de entrar num curso de leitura de lábios, foi um raro momento de sociabilidade. Agora ele conseguia registrar nas fotos os momentos importantes da vida de Tereza e com o binóculo podia saber o que ela dizia quando se encontrava com alguém. Foi assim que veio saber o quanto ela o amava e o quanto ficara ofendida pelo fato que para ele não tinha tanta importância. Também percebia que o tempo não abria espaço para uma reconciliação, tudo estava tão impeditivo como antes. Ela também não tinha encontrado outro companheiro, sentia medo de outra forte decepção e também sentia que o seu coração ainda estava ocupado por Candinho, que parecia jamais se desalojar dele. Era como se ela percebesse a essência do amor exalada por Candinho a todo momento ao seu redor.  
O tempo foi passando e 50 anos já decorreram desde o dia que se casaram. Eram suas bodas de ouro. Candinho achou que deveria comemorar. Não tinha amigos para convidar, mas isso não era necessário, ele possuía as fotos de todos os momentos importantes dessa longa vida. Resolveu decorar todos os espaços do apartamento, quarto, banheiro, sala, varanda, cozinha, não existia um espaço onde não fosse ocupado com as fotos de Tereza, e em muitas delas legendas do que acontecia. Fez um bolo magnífico e colocou de forma solitária sobre a mesa, ornamentado com uma vela de 50 anos e logo abaixo uma boneca bela e sorridente que representava Tereza, sozinha, como ela queria. Deixou na vitrola o DVD com a música “Tema de Lara” na função repetitiva para ficar tocando durante todos os momentos da “festa”, pois essa era a música escolhida pelo casal na época do namoro como a música dos dois. Ninguém podia imaginar, nem mesmo os vizinhos mais próximos, que naquele apartamento iria acontecer às 18 horas, como Candinho tinha programado, uma festa tão significativa.
Mas acontece que Candinho não avaliou devidamente a capacidade fisiológica do seu coração para tão forte emoção. Quando chegou a hora aprazada ele acendeu a vela do bolo e iniciou a canção na vitrola. Aos primeiros acordes, era como se sentisse a presença de sua amada ao seu lado, chegou a sentir seu perfume enchendo o apartamento. Sentiu também o coração disparar com força e acompanhado de uma dor lancinante que se espalhava pelo braço esquerdo. Sentiu que ia perder os sentidos e correu para bater na porta do apartamento em frente. Felizmente a vizinha estava em casa e quando observou Candinho caído na sua soleira o arrastou para dentro do apartamento dele e chamou de imediato a ambulância de emergência. Procurou na agenda para ver o nome de um familiar a quem comunicar e logo encontrou o nome de Tereza na primeira folha com endereço e telefone. Fez a ligação e ela, surpresa, compareceu de imediato. Quando chegou já encontrou a ambulância com os paramédicos que haviam comprovado o óbito. Observou o corpo estendido no tapete onde a equipe de urgência ainda tentou manobras de ressuscitação, ao lado da mesa onde estava posto o bolo com uma vela queimando ao lado de uma boneca. A equipe saiu após ter dado as instruções necessárias e somente ficou a vizinha, sentada e curiosa, com tão insólita cena. Uma mulher bonita que ela nunca tinha visto antes, a passear o olhar carregado de lágrimas pelas diversas fotos e legendas espalhadas pela parede ao som constante e repetitivo do “Tema de Lara”.    
Por outro lado, Tereza, não podia ainda imaginar o que estava acontecendo. Se sentia transportada para outra dimensão que misturava presente com passado. Ouvia a música que a encantava desde a primeira vez que amou um homem e que ainda continuava em seu coração. Via naquelas paredes fotos que não se lembrava de terem sido tiradas, mas que representavam momentos importantes da sua vida e também que explicavam muitos mistérios que aconteceram. Via a foto de sua formatura no momento que recebera um belíssimo buquê de flores que ninguém havia identificado quem enviou e ali estava a foto com a legenda - Parabéns, querida! Viu a foto de quando saíra do hospital, recuperada de forma surpreendente, pois a medicação caríssima que precisava importar, de repente o hospital recebera doação para uso imediato e ela fora beneficiada, e abaixo a legenda – Seja forte, querida! Viu a foto do cortejo fúnebre de sua mãe, quando ela de tristeza, passou dias sem querer se alimentar até que recebeu uma cesta de Café da Manhã anônima e riquíssima de nutrientes que ela imaginava ter sido obra de seus colegas de trabalhos, apesar de nenhum se assumir, agora estava ali a legenda – Estou ao seu lado, querida!
Percorreu todos os recantos do apartamento e viu que toda sua vida estava ali, os risos, as lágrimas, as raivas, a solidão... todos os momentos significativos cheios de carinho e de proteção. Percebeu que muitas vezes havia agradecido ao seu Anjo da Guarda pela proteção recebida, mas agora sabia quem era esse Anjo da Guarda, tão presente e tão eficiente. Voltou para perto do corpo e sentou ao lado da vizinha que continuava calada tentando entender o que seria tudo isso. Cortou um pedaço do bolo e lhe ofertou, explicando:
É o meu marido. Este é o último ato de bondade que ele fez para mim. Nossa festa de Bodas de Ouro. Há 45 anos eu o expulsei da minha vida e se você perguntar o motivo, não sei explicar, talvez tenha vergonha por ter sido tão radical. Agora eu me sinto culpada, minha consciência condena. Eu roubei 45 anos da vida dele e não posso nem ao menos pedir perdão. Enquanto eu alimentava meu orgulho, sem a mínima sinalização de um mínimo encontro entre nós, ele nunca deixou de me amar, cuidar e proteger. Nunca dei ouvidos ao meu coração que se enchia de amor por ele, sempre quis dar razão aos motivos de um mundo preconceituoso. Agora tenho que pagar. Espero viver o tempo que ele ficou recluso. Devo conversar com todos os meus amigos, todas as pessoas que necessitarem ou que chegarem ao meu raio de influência. Quero mostrar o valor que tem o amor, cuja prova estamos vendo aqui. Quero denunciar o inimigo que me atingiu e vitimou, o orgulho, a vaidade, o egoísmo; que construíram barreiras contra a expressão do meu amor, da tolerância, da compreensão, da fraternidade.
Agora, enquanto os acordes do “Tema de Lara” continuavam a encher o espaço, duas mulheres choravam ao lado de um corpo caído em plena festa esquizofrênica.
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 13/02/2013
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