Este é o quarto texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...
10-09-96 (17h39)
A noite está caindo. Logo mais irei ao plantão. O pessoal vizinho procura puxar conversa, fazer amizade, entrosar... e eu monossilábico. À menor chance corro a ficar sozinho para continuar meu monólogo com você através desse caderno.
Pela manhã comi um pedaço de melancia. Agora estou a mordiscar umas uvinhas. Comprei alguns biscoitos e frutas no supermercado. Agora estou com medo de estragar, pois continuo sem apetite e geladeira para mim é um luxo.
Fico pensando aonde está você, o que está fazendo. A vontade é grande de ir lhe procurar, lhe abraçar, beijar. Sussurrar no seu ouvido aquilo que meu coração choraminga. Mas fico a pensar o quanto você sentiu-se machucada por aquilo que fiz e acho que minha presença vai remexer sua ferida.
Por outro lado, também estou sofrendo por causa de suas reações. Vê? É um circulo vicioso que se alimenta dos nossos egoísmos. Podemos pensar: mas não combatemos tanto o egoísmo? Por que ainda somos vítimas dele? Talvez porque nunca o consigamos eliminar por completo. Dessa forma, o que resta fazer é aperfeiçoar e fortalecer o nosso amor, pois ele trará a tolerância necessária para vencer o egoísmo.
Mas tenhamos muito cuidado em não desenvolver um amor contaminado pelo egoísmo, pois, então, dessa forma, nosso amor morre no nascedouro. Já imaginou, se você fosse cobrada quanto ao tipo de roupa, corte de cabelo, amizades, enfim, tudo que uma mente cheia de amor-egoísta, ciúme, fosse imaginar servir de atrativo para outros homens? E por isso já me sentisse traído?
Talvez a comparação não seja proporcional aos fatos acontecidos comigo. Mas, se houvesse uma reversão na minha ótica e eu passasse a ver o mundo como você, existiria uma possibilidade muito grande de meu comportamento, minhas preocupações se voltarem para essas coisas triviais, como vejo acontecer com tantos homens, que vivem com suas companheiras em eternas briguinhas que me parecem fúteis.
Você pode argumentar que há brigas entre eles, mas a relação permanece, e em nosso caso não há brigas, porém, cada confronto nosso há uma possibilidade enorme de destruição do nosso relacionamento.
Veja só, agora, minha situação. Sozinho, fora de casa, longe do conforto e aconchego que construímos juntos. Por que? Falta de tolerância suficiente para se colocar no lugar do outro. Ver o que o outro faz, fez e está fazendo, procurando ser o mais imparcial possível ao ouvir a “voz do coração”. Digo isto porque faço assim. Mesmo machucado fisicamente (quando você me agride) ou emocionalmente (quando você me manda embora no meio da madrugada e fico cochilando pela beira da praia, sendo acordado por guardas me aconselhando ir para casa porque ali é perigoso, sem eu poder dizer para ele que bem que eu queria voltar para casa, mas não posso), fico no seu lugar e procuro entender as razoes do seu gesto. Entendo, tolero e não deixo de lhe amar nem um pouquinho por isso. Pelo contrário, faço uma admoestação calada a mim mesmo por estar lhe provocando tanta dor, decepção e outras coisas mais que você me acusa (e deve ser verdade, pelo menos para você, pois você está sentindo).
A hora está chegando e tenho que ir para o hospital. A partir do momento que chegar, ficarei aguardando com bastante intensidade o seu telefonema para falar comigo. A medida que o tempo for passando e esse telefonema não chegar, acho que ficarei decepcionado, mas também tenho certeza que eu ligarei para ouvir sua voz e talvez... uma palavra de carinho.
Tchau!
Este é o terceiro texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...
10-09-1996 (7h50)
O vento sopra forte nas folhagens. Ouço o barulho e sinto o frio gostoso no meu corpo. Estou sentado ao sol com os pés apoiados no para-choque do carro.
Hoje acordei cedo e um pouco incomodado. Não estou acostumado com a dureza do chão, apesar do colchonete.
Li um pouquinho, depois, ao levantar, coloquei os joelhos no chão e numa atitude de subserviência, implorei ao Senhor ou qualquer Poder Superior que me fizesse forte, como um instrumento do seu amor; e que proporcionalmente me desse igual força de tolerância, de compreensão.
Desculpe, amor, não ousei pedir a Ele que me transformasse. Mas, de todo o coração, apesar de meus sentidos terem o sentido da humanidade como um todo, no meu coração a motivação era para nós conseguirmos chegar a um ponto de concordância, de entendimento e de plenitude na vida.
Aqui é tudo tão gostoso, apesar da aspereza que a Natureza nos oferece. Parece estarmos mais perto de Deus. Se você estivesse aqui comigo tenho certeza que estaria achando maravilhosa a experiência.
Também preciso lhe contar as trapalhadas. Ontem cheguei aqui já estava escurecendo e foi uma dificuldade para arrumar minhas coisas; para completar, estava chovendo. Ficou tudo molhado, cheio de areia. Os colegas, solícitos, me arranjaram vassoura, bolachas, água... essas coisas. Ao ir dormir fui vestir aquele blusão que compramos em São Paulo. Aí percebi que estava com o seu. Fui dormir com a barriga descoberta.
Depois vi que tinha lembrado da escova, creme dental e perfume, mas esqueci sabonete, pente e o sapato branco do plantão. Não sou acostumado a viajar sozinho nem a pensar em sair de casa nessas circunstancias. Até mesmo quando viajo sozinho, fui acostumado a não me exercitar em tirar aquilo que vou precisar.
Veja só! Pensava que não tinha nenhuma dependência, pelo menos severa. Mas, tenho você! Quando estou longe e passo dias sem poder lhe ver, você já sabe qual é a minha reação. Fico macambúzio, sem qualquer motivação para qualquer tipo de interação social, como aconteceu daquela vez em Belo Horizonte.
Mas quando estou longe (e não é tão longe assim) com a possibilidade de não mais a tocar (não digo amar, pois sempre irei lhe amar, quer estejas perto ou longe dos meus olhos, pois qualquer distancia é impotente em lhe afastar do meu coração) um aperto estranho me envolve o corpo e a mente, e não consigo pensar em outra saída. Talvez se anestesiássemos nossos neurônios. Parece que é isso o que faz os alcoolistas e ao ter essa percepção, me deu uma extrema simpatia a esses indivíduos. Porque, se tal acontece, realmente eles são vítimas de um sentimento indizível através de palavras, cujo consolo encontram no álcool e que depois torna-se o seu algoz.
É tão bom sentir todo esse amor que sinto pela Natureza. Mas é tão melhor ter alguém que eu possa canalizar todo ele e me sentir maravilhoso!
Esse alguém, amor, eu já encontrei e já o tenho (ou tive?) e meu desejo é permanecer com ele para sempre, pois já ultrapassou os limites biológicos, materiais (pelo menos para mim é assim) e está existindo numa superestrutura espiritual onde o olhar, o sorrir, o tocar, consegue fazer vibrar todo o meu ser, e não o esforço físico de uma relação sexual.
Deixa eu parar um pouquinho para sair. Logo mais volto a conversar.
Este é o segundo texto que escrevi naquele caderno que já falei antes e que registrava meus sentimentos depois que fui de casa expulso pela minha segunda esposa...
09-09-96 (21h30)
Minha amada!
Estou aqui sozinho, no meio do campo, dentro de uma barraca recém adquirida. Como eu queria que você estivesse aqui, mesmo se não fizesse sexo. Seria tão bom sentir seu calor, seus carinhos, sua voz... me aconchegar junto de você e me estirar no chão, como fizemos recentemente em São Paulo.
Eu sinto que ao longo do tempo que convivemos, meu amor aumentou, e acho que continua a aumentar progressivamente. Tanto é verdade que aqui estou, sozinho, ouvindo a chuva cair no teto da barraca e não tenho nenhum interesse em sair e procurar alguém para me envolver sexualmente. Isso é uma prova mais do que suficiente para mostrar que o amor que sinto por você é maior que qualquer impulso sexual que eu possua.
Mas, você não pode jamais esgrimir esse amor e tentar inibir esses impulsos, pois eles são fortes e estão enraizados no fundo da nossa cabeça e podem causar graves estragos no nosso amor. E não quero que jamais isso aconteça. Por isso respeito tanto a liberdade que eles exigem, pois, sem eles sentirem, já estão tão limitados!
Lembro que num passado recente eles tinham uma potencia incrível e não me deixavam parado um só instante. Hoje me surpreendo passar dias, semanas, meses até, curtindo ficar só ao teu lado, ouvindo discos, vendo filmes, fazendo feira, passeando, chafurdando na cama... e às vezes sexo!
Como gostaria agora de lhe beijar. Vou deitar no meu chão. Tchau!
Lendo agora esses textos, 24 anos depois de escritos, quando eu tinha 44 anos, em plena efervescência dos meus hormônios sexuais, vejo o quanto eu prezava o meu relacionamento conjugal, o quanto tinha prazer com ele em todas as instâncias comportamentais. O fato dessas forças hormonais me levarem a desenvolver afetos fora do casamento, que chegavam ao relacionamento sexual e até a geração de filha, como foi o caso e daí, por eu ter informado, ter sido expulso de casa, não eliminavam a qualidade do meu afeto conjugal. Pode ser que afetasse o quantitativo de tempo que eu passasse com minha esposa, já que eu estaria envolvido com outra pessoa.
Essa conjuntura é interessante, pois minha parceira extraconjugal sabia do meu casamento e da minha intenção de não acabar com minha esposa para ficar com qualquer outra pessoa. Mesmo assim minha parceira extraconjugal tinha afeto suficiente para ficar dentro desse relacionamento, e até gerar um filho nesse contexto, mesmo que não fosse um filho planejado, mas que foi devidamente aceito e registrado.
Será que ela fez o correto tendo fez o que fez? Hoje, com o aval desses 24 anos passados, a minha consciência diz que não, que ela fez errado, que poderíamos viver até hoje com o mesmo clima de harmonia e felicidade, se ela não desse tanto valor a esses encontros que todos sabiam ser fortuitos e não permanentes.
Hoje completo 68 anos. O tempo passa tão suavemente que nem percebemos. Numa hora somos crianças, brincando de rodinha de ferro, na outra somos adultos, já velhos, meditando nas histórias passadas, nas pessoas, nos relacionamentos... tanta gente, tantas coisas...
Como seria bom pegar tudo que se passou de positivo na minha vida e pudesse contar integralmente com tudo, vivenciar, relacionar, aplicar o amor em todas as dimensões. Era isso que eu sempre procurei na minha trajetória. Evitei ficar preso dentro de qualquer circunstância, viver com exclusividade afetiva com qualquer pessoa, pois sempre pensei que o amor devia fluir com liberdade, sem preconceitos de qualquer espécie. Para ser coerente com essa forma de pensar, entrei em combate com o demônio dos olhos verdes, o ciúme. Foi uma batalha ferrenha, mas me sai vitorioso. Não tenho mais ciúme de nenhuma das pessoas com as quais me relacionei ou me relaciono. Elas podem ter a mesma liberdade que eu tenho de expressar o seu amor, o seu afeto com qualquer pessoa do seu interesse, indo até os níveis mais profundos da interação, o ato sexual, se for conveniente para ambos.
Acontece que cada pessoa que me relacionei nestes tantos anos de vida, jamais encontrei alguém que tenha vencido o demônio do ciúme. Por mais que tenham conhecimento da minha forma de pensar e de agir, de ter vencido o ciúme, mesmo que decidam viver comigo nessas circunstancias, quando chega o momento de perceberem a troca de afetos com outras pessoas, a raiva e o desespero toma conta da mente e reações.
Dessa forma, vivo dentro de um universo estranho, arrodeado de pessoas que desenvolvem afeto por mim, mas que a qualquer momento podem se afastar definitivamente da minha convivência, pela incapacidade de resistir a inclusividade da minha forma de amar.
Perto de chegar num nível de perda da capacidade psíquica, talvez fique na convivência de alguém cheia de ressentimentos, por nunca ter conseguido a exclusividade da minha capacidade de amar, como tanto desejam.
O que me deixa fortalecido nessa posição, ameaçado de viver o resto da minha vida sozinho, sem o carinho de uma companheira, é porque tenho a convicção de estar cumprindo a vontade de Deus, de estar obedecendo as lições do Cristo, de formatar uma maquete da família universal e assim contribuir para a construção do Reino de Deus.
Posso estar sozinho e até repudiado pelas pessoas que mais amo, mas estou satisfeito, se este é o preço que devo pagar para cumprir a minha missão frente ao Pai. Talvez eu tenha muitas falhas em diversos outros aspectos, mas dentro deste nível de relacionamento afetivo com uma parceira, acredito que eu esteja desenvolvendo a contento, mesmo que eu receba críticas severas de todas elas. Mas como eu vejo do lado delas uma série de incoerências frente ao Evangelho do Mestre e principalmente da aplicação do amor incondicional, nenhuma consegue me convencer que eu esteja errado nas minhas elucubrações.
Assim estou atravessando esses 68 anos de vida com o sentido de coerência com o Pai, e, apesar de tantos defeitos e fraquezas que possuo, isso me deixa confortável com minha consciência, onde se localiza a lei dEle.
João Batista deu um conselho importante para aqueles que iam ouvi-lo as margens do Rio Jordão, segundo escreveu Lucas (3:13): “Não peçais mais do que o que vos está ordenado.” Essas orientações servem para aqueles que são inquietos, ansiosos; que deixam de fazer um trabalho frutuoso devido a precipitação, a desordens e recapitulações em decorrência. Toda atividade edificante reclama entendimento e engajamento eficaz nas atividades pertinentes.
A palavra do precursor do Cristo não visa anular ou diminuir a responsabilidade, mas recomenda espírito de precisão e execução nos compromissos assumidos. As realizações prematuras ocasionam grandes desperdícios de energia e atritos inúteis.
Acredito que eu não esteja agindo prematuramente, pelo contrário, acredito que esteja agindo de forma lenta, retardada, procrastinada. É a outra face da moeda. Não sei qual é a pior, talvez seja a que estou fazendo ou deixando de fazer. Talvez agindo prematuramente, eu gastasse mais energia e causasse atritos, mas pelo menos o trabalho estava sendo realizado de alguma maneira. Da forma que eu não faço, nada é realizado, eu não gasto energia nem crio atritos, mas nenhum trabalho está sendo feito.
Nos círculos evangélicos da atualidade, o conselho de João Batista deve ser especialmente lembrado, mas também não deve ser esquecido de quem está na ociosidade, sem nada realizar.
Quantos pedem novas mensagens espirituais, sem haver atendido a sagradas recomendações das mensagens velhas? Eu não costumo pedir mensagens para iniciar novos projetos ou atividades. Geralmente peço ajuda para resolver o que já tenho como compromisso na minha mente, as recomendações que o Pai já colocou em minha consciência.
Reconheço minha condição de aprendiz e tenho o cuidado de transmitir a verdade da Boa Nova ao próximo, procurando cumprir a responsabilidade que tenho dentro de casa, alinhando o que falo lá fora com o que pratico dentro do lar que o Pai me permitiu. Ao lado das revelações que chegam à minha mente, assumo a responsabilidade pelo quanto que recebi, dos deveres inalienáveis pelo que aprendi.
O programa individual de trabalho da alma, no aprimoramento de si mesma, na realização da vontade do Pai, na condição de encarnada ou desencarnada, é lei soberana.
Inútil enganar a si mesmo com belas palavras, sem que estejamos aderidos intimamente a elas, ou recolher-se à proteção de terceiros capitulando na tarefa a ser realizada, na esfera da carne ou nos círculos espirituais que nos são próximos.
De qualquer modo, haverá na experiência de cada um de nós a ordenação do Criador e o serviço da criatura. Não posso multiplicar as promessas ou pedir variadas tarefas ao mesmo tempo. Antes de tudo, é indispensável receber a ordenação do Senhor, cada dia, e executá-la do melhor modo.
Por isso estou sempre pedindo, não novas tarefas, mas sim a capacidade racional de executar o que já tenho determinado dentro de mim com a missão que o Pai desenhou para mim.