Essa devoção constante a Deus orientada pelo Baghavad Gita, é uma das mais difíceis, pois entra na própria carne, dilacerando e subjugando o corpo e suas motivações aos interesses espirituais. Mas, o desapego de filhos, esposa, pais, lar, não significa que não se deve ter sentimento por eles. Eles são objetos de afeição natural. Mas quando eles não são favoráveis ao progresso espiritual então não podemos ter apego a eles. Não devemos esquecer também o apego com o próprio corpo, que muitas vezes, talvez como defesa do próprio corpo, não entra na consciência.
Da mesma forma que procuro seguir a lição máxima que Jesus nos deixou, de amar ao próximo como a nós mesmo, vou procurar aplicar também aqui neste nível devocional do desapego. Vou procurar me desapegar do próximo assim como eu me desapego do meu próprio corpo. Assim, deixo equiparado o ato de amar com o ato de desapegar. Colocado dessa forma parece um grande paradoxo, considerar o amar-apegar em campos opostos. Mas essa é uma consequência do Amor Incondicional. Se devo aplicar o amor ao meu redor sem limites de qualquer natureza, com a mesma força com a qual eu me amo, então não devo privilegiar nenhum tipo de relacionamento que implique num consumo extra ou talvez exclusivo de tempo, que é a característica do apego. Qualquer tipo de relacionamento que exija esse apego, essa exclusividade, termina se contrapondo como obstáculo a aplicação do amor incondicional que privilegia o próximo dentro das circunstâncias da vida.
Este é o dilema que enfrento no meu cotidiano. As minhas ações amorosas levam invariavelmente ao desenvolvimento do apego, seja por quem quer que seja que esteja ao meu lado. Essa pessoa, envolvida por meu afeto e que se torna apegada a mim, deseja cada vez mais um tempo maior comigo. Mas como sou dirigido pelo amor incondicional, o próximo que se encontra ao meu lado, aqui ou algures, é quem tem a prioridade. O coração apegado sofre com a falta do ente amado, principalmente quando sabe que ele está com outras pessoas praticando a distribuição desse amor que gera novos apegos. O sofrimento passa a ser uma consequência natural. O único antídoto para esse mal consiste na pessoa absorver a compreensão da necessidade de aplicação do amor incondicional e não só o considerar em teoria.
Outra advertência é necessária fazer: o amor que envereda pelos caminhos do romantismo, muito ligado a sexualidade, que implica na geração de filhos, é um forte elemento gerador de apego, que se não for devidamente domesticado pela força do amor incondicional pode provocar graves consequências nos sentimentos com o surgimento de raiva, mágoa e até ódio. Quando nos sentirmos no fragor dessa batalha, é importante que nos refugiemos na caverna da solidão para que sozinhos possamos refletir e ajustar nossos sentimentos dentro da harmonia que Deus espera que consigamos.
A esperança é um componente importante para o aparelho psíquico. Ela é construída com base nos sonhos, que criam uma determinação, que operacionaliza a vontade, tudo isso em sintonia com a consciência. Com essa organização mental, o comportamento pode ser operacionalizado no cotidiano da vida e a esperança passa a funcionar como o porta-bandeira dos ideais.
Meu aparelho mental tem esse formato, organização e funcionalidade. Direcionei meus sonhos para ajudar a construir o Reino de Deus segundo as lições do Mestre Jesus e da missão que o Pai permitiu fosse intuída em minha consciência. Vivo agora com a esperança de ser cada vez mais competente na realização desse trabalho, cujo elemento principal é a aplicação prática do Amor Incondicional em todos os relacionamentos. A leitura que faço em livros com inspiração divina, sempre está alimentando o meu espírito com essa responsabilidade que assumi. Hoje, com a leitura do Salmo 118: 114-117 atentei para as considerações que acabei de fazer: “Vós sois meu abrigo e meu escudo; Vossa palavra é minha esperança. Afastai-vos de mim, homens malignos! E guardarei os mandamentos de meu Deus. Sustentai-me pela Vossa promessa, para que eu viva, e não queirais confundir minha esperança. Ajudai-me para que me salve, e sempre atenderei a Vossos decretos.” (Bíblia Sagrada, Editora Ave Maria, Edição Claretiana, 1998).
A leitura que faço desses textos religiosos não são literais, e sim aquela que melhor se assesta sobre os trilhos da minha consciência já pré-estabelecidos pela intuição do Espírito Santo de Deus e com a aceitação do meu livre arbítrio. Então, acato a compreensão de que Deus é o meu abrigo das intempéries que a vida traz, e escudo contra os ataques reacionais que eu venha a sofrer como consequências de minhas ações, desde os adversários declarados até as pessoas que mesmo declaradamente me amam mas que se sentem de alguma forma prejudicadas com minha forma de agir. Como foi o próprio Deus que me instruiu ao colocar na minha consciência a Sua vontade, nada mais justo do que Ele ser agora meu abrigo e escudo.
O apelo para que sejam afastados os homens malignos, é feito de forma direta. Sou eu que devo me afastar dos homens malignos e que devo ser firme em mandar que eles se afastem, se eles querem se aproximar com suas intenções malignas. As palavras e ações desses homens são recheadas de egoísmo, corrupção, lascívia e maledicências. Pode vir temperada com a ironia risonha e escrachada, fazer a festa, todos rirem ao seguir o fluxo desses pensamentos. Pode vir também recheadas de conhecimentos aprofundados em determinada área e procurar assim ofuscar a todos e se tornar o centro das atenções. O clima da reunião entre os amigos fica dessa forma direcionado para as ações puramente mundanas, onde o valor do corpo é imensamente maior que o valor do espírito, e este quando citado é encarado com franca ironia. Dessa forma eu não teria condições de guardar e aplicar os mandamentos que Deus colocou na minha consciência na forma de missão. Devo me afastar desses homens malignos! Mas existem alguns deles que foram colocados dentro de minha família biológica, e, portanto, os laços de sangue que também são determinados por Deus, me faz ter uma responsabilidade extra com essas pessoas. Não posso simplesmente excluir do meu convívio devido suas ações pecaminosas. Pelo contrário, pode Deus se utilizar desse artifício para saber até que ponto está a minha firmeza de agir dentro dos seus mandamentos, sofrendo toda a pressão irônica das forças do mal. Não fujo ao confronto, mas me deixo levar pelas ironias e deboche, e não encontro forma de trazer o conteúdo da mensagem espiritual sem uma conotação de fanatismo. Sei até que a maioria das pessoas presentes iria sintonizar com as palavras espirituais, mas não quero que a pessoa “maldosa” se sinta isolada, criticada e rejeitada. Quero que ela se sinta incluída em outro nível de vibração, que faça uma reflexão de seus atos. É o esforço de inclusão que está inerente ao amor incondicional.
Com tudo isso vem o apelo para que Deus me sustente na Sua promessa, na missão que Ele me deu, para que eu viva dentro dela, para que não seja confundida a minha esperança. Se a minha esperança for confundida, eu posso me perder e não cumprir a minha missão. Daí o apelo tão veemente: “Ajudai-me para que me salve!”
Então, a minha esperança continua a apontar os caminhos do Senhor. Sei das dificuldades que enfrento, tanto dentro como fora de mim, desde o egoísmo de meus parceiros e companheiros, até as minhas falhas e displicências. Mas a vontade continua firme em seguir a bandeira da esperança que continua a apontar para a formação do Reino de Deus alicerçado no Amor Incondicional.
Existem dois tipos de cegueira: a cegueira material, onde os olhos ou o cérebro não conseguem ver ou distinguir as formas materiais, próprias do sentido da visão; e a cegueira espiritual na qual nossa consciência não consegue distinguir a realidade do mundo espiritual, mesmo com toda a evidência da coerência e de resultados científicos. Para a primeira cegueira não existem contradições, todos aceitam a sua realidade e ajudam aos cegos, que andam com suas bengalas ou cães-guia, nas suas adaptações ao mundo. Para a segunda cegueira existem diversas contradições, desde a posição ateia da inexistência de Deus e do mundo espiritual, até as diversas interpretações e conceituações de sua constituição. Estes cegos não são tão fáceis de identificar como os primeiros, pois à distância todos parecem iguais, nenhum deles usa bengalas ou cães-guia. Porem ao chegar perto, aquele que não é cego, vê o tamanho da cegueira que cada um pode ser portador.
Existe também outra forma de diferenciar as duas cegueiras: a primeira geralmente é adquirida, poucas pessoas nascem com ela; a segunda é inerente a nossa vida e constituição fisiológica e psicológica. Não percebemos e não entendemos o mundo espiritual desde o nascimento. É necessário que sejamos educados para a sua percepção consciencial, pois raras pessoas conseguem ter no seu campo de percepção a visão do mundo espiritual. Para que possamos sair dessa cegueira espiritual é necessário que sejamos instruídos e educados quanto a existência do Criador, da hierarquia dos seres inteligentes, da base existencial onde se processa a vida, e da Lei que organiza todo o processo evolutivo da Natureza.
Foi necessária a materialização dentro de um corpo biológico e entre nós, de um ente espiritual elevado, puro, como Jesus Cristo, que tivesse condições morais de nos passar essas lições do mundo transcendental, para que fossemos “curados” de nossa cegueira. Hoje temos o Evangelho, um registro de suas palavras e ações, que serve de roteiro para nós possuirmos a luz e sermos iluminados nas nossas diversas relações. No momento que adquirimos a luz, que deixamos de ser cegos, assumimos também a responsabilidade de a levar para quem ainda não a possui, mesmo que essa pessoa seja resistente e queira permanecer na escuridão, pelo efeito da ignorância na sua consciência. Jesus fazia milagres com relação a cegueira material, desde que a pessoa quisesse e tivesse fé, mas quanto a cegueira espiritual a pessoa devia usar o seu livre arbítrio para sair das trevas em direção a luz. Vejamos o exemplo de Saulo de Tarso. Ele sempre estava a ouvir a pregação dos apóstolos, ele tinha o contato com a luz, mas a luz não fazia efeito sobre ele. Até que a luz intensa do Mestre o atingiu, o levou à cegueira material, e a partir daí ele foi sensibilizado para a luz espiritual e conseguiu sair de ambas as trevas.
Eu, como a maioria das pessoas, acredito, fui adquirindo essa luz espiritual ao longo de minha vida, ouvindo palestras e sermões, lendo livros espiritualizados, participando de religiões e fazendo as minhas próprias experiências, tanto conscienciais quanto materiais. Hoje reconheço ser portador de uma boa parcela de luz e sinto o dever de a redistribuir ao meu redor. Mas sinto dificuldades em muitas ocasiões, mesmo que seja entre colegas, amigos ou familiares. A pressão do mundo material é tão forte, que me vejo sem espaço para falar dessa luz transcendental, sem passar por chato ou fanático. Com algumas poucas pessoas consigo dividir essa preocupação e como fazer para vencer esse tão grande obstáculo que deixa pessoas tão boas e caridosas completamente cegas. Também posso me envolver em situações de confronto material como aconteceu ontem aqui em Natal, num protesto contra aumento de transporte coletivo, e nada poder fazer. Nesse conflito, muitas pessoas foram envolvidas direta ou indiretamente, e mesmo que fossem pessoas iluminadas, o tamanho das trevas que foi formada impedia a qualquer manifestação da luz, a não ser que tivesse presente um ser superior, de luz e amor.
Cada vez mais eu reconheço que a oração verdadeira é uma linguagem que somente conhece aqueles que reconhecem o Criador e a importância do amor. Antes de se encontrar com o Mestre no caminho de Damasco, Saulo de Tarso podia ser chamado de um homem religioso, intenso, zeloso, convicto, mas não um homem de oração. Saulo memorizou e repetia todas as orações judaicas. As palavras do Mestre sobre os religiosos hipócritas bem que podia se aplicar duplamente a um fanático como Saulo: “E quando orares, não sejas como os hipócritas, pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam seu galardão” (Mateus, 6:5). Talvez a oração do orgulhoso fariseu em Lucas 18:10 poderia refletir exatamente o coração de Saulo antes de sua conversão: “Ò Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens”.
Mas a oração de Saulo se tornou diferente depois de ter se encontrado com o Mestre. Seu espírito perseguidor e orgulhoso se transformou em pó. Seus olhos que haviam testemunhado o martírio de Estevão sem desenvolver amor ou compaixão, agora não conseguiam ver ninguém. Seu corpo inteiro permaneceu vazio por três dias, sem comida nem bebida. Mas quando ele voltou e se tornou Paulo, encontrou a linguagem da oração, o caminho para Deus, a Lei do Amor.
A minha conversão não foi tão dramática quanto a de Saulo, mas tem alguns pontos de contato. No início de minha vida produtiva assumi o “nome de guerra” dado pela Marinha, Rodrigues, como aconteceu com todos os meus colegas que assumiram seus sobrenomes. Nessa fase eu tinha desconfiança da existência de Deus, apesar de O procurar em diversas igrejas, templos ou terreiros. Fazia as orações repetitivas e entoava os cânticos religiosos, mas sem o aprofundamento na alma, ficava sempre a grande interrogação na minha mente, se tudo aquilo que eu fazia não era mera fantasia, um delírio coletivo. Não dava a devida importância a oração, apesar de fazer por hábito aqui acolá uma reza decorada. Acostumei até a rezar uma Ave Maria toda vez que eu avistava no início da noite a Estrela Dalva, a que eu considerava como minha estrela protetora, a regente do meu signo. Quando um dia, forçado pelas evidências da existência de Deus por todo o lado que me virasse, eu assumi que não iria mais duvidar da Sua existência. Eu O via constantemente, como poderia não existir? Então descobri que o mundo espiritual era mais importante que o material e era lá que a vida real se processava. Aqui no mundo material, tudo são aparências, as formas surgem e vão embora ao saber do tempo, inclusive o corpo biológico. Então era lógico que eu procurasse um meio de comunicação com os seres que habitam o mundo espiritual, principalmente a energia criadora de tudo, Deus. Passei a dar mais importância ao meu prenome, Francisco, tem uma ligação mais forte com o mundo espiritual.
Hoje ainda não tenho muita habilidade com a linguagem da oração, fico tímido e as palavras não saem como eu espero. É diferente daquele hipócrita que a Bíblia refere, que rezava para todos verem. Eu prefiro rezar num canto isolado, sem nenhuma testemunha por perto. Mas sei da sua importância e que devo orar com o coração, com os sentimentos, falar ao Pai ou aos espíritos superiores, capitaneados por Jesus de Nazaré, com respeito e como irmãos que todos somos, já que somos filhos do mesmo Pai. Faço o esforço diário para obter o hábito da prece e perder a timidez de falar com meus irmãos espirituais que estão dispostos a me ajudar, a partir do Anjo da Guarda que me protege desde o nascimento, até o Pai que me criou e que está comigo a todo instante. Então, por que a timidez?
Retomando as diversas formas de devoção a Deus orientado pelo Baghavad Gita, devo tentar compreender o sofrimento de aceitar a passagem do tempo na forma de nascimento, morte, velhice e doença. A literatura hindu descreve de maneira analítica o mundo do não nascido, sua estada no ventre da mãe, seu sofrimento, etc. Deve-se ter completa compreensão de que o nascimento é angustiante. Porque nos esquecemos de toda a aflição que passamos dentro do ventre da mãe, não nos interessamos em procurar alguma solução para os repetidos nascimentos e mortes. Igualmente, por ocasião da morte, há todas as espécies de sofrimentos, e eles também são mencionados nas escrituras autorizadas. Deve-se comentar sobre isto. E quanto a doença e a velhice, todos tem experiência prática. Ninguém quer ficar doente e ninguém quer envelhecer, mas não há como evitar isso. A não ser que tenhamos uma visão pessimista dessa vida material, considerando os sofrimentos próprios do nascimento, da morte, da velhice e da doença, não haverá ímpeto para progredirmos na vida espiritual.
Esta forma constante de devoção a Deus, essa compreensão dos efeitos da passagem do tempo, é de grande utilidade para a minha evolução espiritual. Hoje eu compreendo e aceito todo esse sofrimento advindo da passagem do tempo e sinto também que é atenuado muito desse sofrimento com essa compreensão. Hoje eu sinto a passagem do tempo e seu efeito sobre o envelhecimento, por exemplo, e não percebo sofrimento por isso. Percebo a transformação que ocorre lentamente no meu corpo, a sua perda de flexibilidade, de tonicidade, de vigor físico, mas por outro lado a excelência dos pensamentos que se aprimoram, amadurecem e se capacitam a receber grande porção da verdade universal e agir com um pouco mais de sabedoria.
Quanto a doenças, não conseguirei evitar a maior parte delas que acompanham até mesmo o processo de envelhecimento. Mas posso evitar algumas delas com o uso adequado de vacinas e de bons hábitos de vida. Até hoje não sinto a necessidade do uso de medicamentos de forma constante, como tantos com a minha idade já estão fazendo.
A proximidade da morte para mim já não constitui tanto medo e sofrimento quanto antes. Hoje eu sei que esse fenômeno é um importante fator para a continuidade da vida em outros planos, até mais significativos e importantes que este plano material em que nossa consciência está hoje profundamente mergulhada. Sei que o amor é a energia fundamental de todos os planos de vida e que eu já aprendi bastante sobre ele e que já estou capacitado em recebê-lo e doá-lo constantemente dentro da dinâmica da Natureza e em obediência aos planos divinos.
Assim, consigo fazer essa devoção a Deus no meu cotidiano sem grandes esforços e com belos resultados, no entendimento do sofrimento necessário por ocorrência da passagem do tempo e da perspectiva saudável da evolução da vida ao longo da cronologia e dentro de todos os planos que a vida oferece.