Muitos homens e mulheres, desde a antiguidade cristã, escolheram imitar Jesus, nos desertos do Egito, da Palestina, em lugares solitários, montes e vales remotos. Assim surgiram os mosteiros, conventos, ordens contemplativas e tantas casas de retiros em toda a parte até a atualidade.
O deserto que a Quaresma recomenda é um convite para todos que creem em Deus, para todos que buscam a Verdade absoluta, para todos que se esforçam para viver o Amor Incondicional.
Há uma exortação feita por Santo Anselmo que nos orienta como aproveitar melhor a Quaresma: “Pobre mortal, foge por breve tempo de tuas ocupações, deixa um pouco os teus pensamentos tumultuados. Deixa para traz, nesse momento, graves preocupações e põe de lado tuas fadigosas atividades. Sê, um pouco, atento a Deus e nEle repousa. Entra no íntimo de tua alma. Exclui tudo, menos Deus e aquele que te ajuda a procurá-Lo. Fecha a porta e diz a Deus: procuro o Teu rosto. O Teu rosto eu procuro, Senhor.”
Assim, o deserto tornou-se um modo de viver a Quaresma, fazer um pouco de vazio e de silêncio em torno de nós, reencontrar o caminho do nosso coração, evitar tanto o barulho e as solicitudes externas para entrar na profundidade do nosso ser. A vontade de Deus em nossa consciência é abundante para nos propor o caminho, para fazer o bem e evitar o mal, para nos levar a revisão de vida, à conversão se for necessária. O Evangelho nos diz que o Espírito, do qual Jesus está repleto, o impele para o deserto; o Filho de Deus se deixa levar pelo Espírito. Vale lembrar a carta de Paulo aos Romanos: “Todos os que se deixam levar pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.”
Com todas essas orientações considero importante eu entrar no meu deserto mental nesse período próprio da Quaresma. Não posso deixar o trabalho, minhas responsabilidades como Santo Anselmo nos exorta, mesmo que seja por um período de 40 dias. Mas posso, sempre que possível, privilegiar o silêncio em torno de mim e a meditação; deixarei os pensamentos tumultuados e farei o que devo fazer sem tantas complicações na cabeça, de alguém, assim ou assado não gostar, de querer fazer a vontade do outro e esquecer a vontade de Deus; excluir todo tipo de preocupação da cabeça e deixar o espaço para o rosto de Deus se manifestar em minha consciência, dizer da Sua vontade e me orientar na correção de rumos necessária.
Procurarei experimentar esse deserto mental nestes 40 dias de Quaresma, em busca da vontade de Deus, seguindo os passos do meu irmão mais amado e procurando cumprir minha missão.
Podemos entender a existência de dois desertos: um deserto físico e um deserto espiritual. No tempo de Jesus Ele foi para um deserto físico e vivia cercado de um deserto de ignorância da verdade, da justiça e do amor incondicional.
No Evangelho de Marcos, 1:12-15, diz que “Naquele tempo, o Espírito levou Jesus para o deserto, onde ficou durante quarenta dias, e foi tentado por Satanás.” Jesus tinha apenas acabado de ser batizado no rio Jordão por João Batista, recebeu a investidura messiânica, quando se ouviu a voz do Pai: “Este é o meu filho muito amado, escutai-o.” Foi enviado para anunciar a Boa Nova a todos, curar os corações feridos e pregar o Reino de Deus. Antes, porém, Ele jejuou, rezou, meditou, lutou, em profunda solidão e silêncio.
Reconheço que o Pai quando diz “Este é o meu filho muito amado” vem uma ponta de ciúme em meu coração. Afinal eu também não sou o seu filho e também não posso ser muito amado? Mas logo minha consciência faz as devidas correções: “Você também é considerado por sua mãe como o filho muito amado. Todos os seus irmãos tem inveja dessa condição. Mas porque isso é assim. Você é um filho obediente, demonstra carinho e interesse pelo bem estar de todos, jamais disse em resposta a uma advertência uma palavra grosseira. Comparado aos seus irmãos você tem uma estatura moral superior, justifica que o coração de sua mãe com justiça o considere o muito amado. Da mesma forma é Jesus com relação ao Pai. De todos os filhos existentes no mundo, Jesus é aquele mais obediente e disposto a fazer a Sua vontade, mesmo que fazendo assim sacrifique a própria vida. Tenho que reconhecer que não tenho ainda essa competência de Jesus, devo reconhecer que Ele merece ser o muito amado filho de meu Pai em comparação a todos nós, seus irmãos.
Meus irmãos absorveram esse julgamento que minha mãe fez sobre mim, me respeitam e seguem minha orientação. Devo também seguir esse exemplo. Devo reconhecer a autoridade moral que Jesus possui e seguir suas orientações, mesmo que o Pai tenha me dado alguma tarefa específica, com certeza será um complemento daquilo que foi ensinado por Jesus.
Esse tempo da Quaresma é propício para essas reflexões e mesmo não sendo possível ir ao deserto físico para ter a experiência que Jesus teve, posso reproduzir em minha mente o deserto espiritual e passar por experiências parecidas.
Está escrito na Bíblia: “E aconteceu, à hora da tarde, que Davi se levantou do leito e andava passeando no terraço da casa real, e viu do terraço a uma mulher que se estava lavando; e era esta mulher mui formosa a vista (2 Samuel 11:2)”
Aqui Davi, o grande devoto de Deus, tronco hereditário de onde viria surgir Jesus, sofreu a mais cruel derrota da parte do inimigo da nossa alma, nosso próprio corpo. Verificamos assim que o crente mais devoto possui um coração corrupto, totalmente aberto às concupiscências da carne, e portanto tem de cuidar das entradas de seu coração, particularmente no que se refere aquilo que os olhos contemplam. Não é que esse instinto sexual que pode levar à luxúria seja um vilão desalmado e sem utilidade. Esse instinto sexual garante a preservação da espécie, a continuidade da vida biológica no mundo material. Portanto, essa engenharia de Deus, que nos trás tão forte sensação de prazer, o orgasmo, é de fundamental importância. Esse prazer que gratifica profundamente o homem e mulher, garante o interesse de ambos na prática que tem como consequência a geração do filho. Portanto, o ato sexual tem conotação divina na sua origem, mas a luxúria que deriva dele, procura com exclusividade a obtenção do prazer, sem nenhuma outra preocupação. Não considera a geração do filho, não se importa com o interesse da parceira, não avalia as circunstâncias e o prejuízo que pode causar a terceiros.
Reconheço a força do instinto sexual como uma grande motivadora do comportamento animal em geral e humano em particular. É ela que gera o amor romântico que se distancia tanto do amor incondicional; que forma os núcleos familiares exclusivistas, que favorece os privilégios grupais de toda natureza; que viabiliza os graves desníveis sociais com a criação dos miseráveis milionários e poderosos e miseráveis pobres e famintos; que fomenta guerras e revoluções em todos os rincões do planeta.
Não posso evitar a geração dessa força em meu organismo e o desejo que ela provoca em minha mente. Porém eu posso evitar que meu comportamento degenere em luxúria. Posso fazer como a maioria dos santos fizeram, sublimar esse desejo em outra atividade voltada para a vontade de Deus, privilegiando o celibato. Mas também posso usar essa força e a colocar a serviço do amor incondicional. Dessa forma o romantismo não é privilegiado como a prioridade, as relações se formam na base da inclusão onde todos que se sintonizem afetivamente podem aprofundar o relacionamento até onde o amor incondicional permitir. Agindo assim, o potencial de prazer se torna viável no contexto global de nossa qualidade de vida.
Esta é uma das minhas principais falhas, na comunicação com Deus, com Jesus e com todos os seres espirituais que estão prontos a nos ajudar em nossa caminhada: a oração. Apesar de saber da sua importância, sempre estou esquecendo o momento de a fazer e quando lembro as palavras não chegam a minha mente. É como se houvesse um bloqueio devido ao endurecimento da minha mente com os estudos materialistas, por ter vivido tanto tempo afastado do amparo do Pai e até duvidando da sua existência.
Antes eu até imaginava que não precisava rezar para Deus, pois se Ele existe realmente, sabe de tudo que precisamos e nos dará quando for necessário mesmo. Ele sabe de tudo antes de nós pedirmos. Ele não é ignorante acerca de nossas necessidades nem hesitante em atendê-las. Por que então devemos orar? Qual a utilidade da oração? Era assim que eu pensava e é isso que me bloqueia até hoje, mesmo tendo informações bastante coerentes que defendem a prática da oração, como a opinião de Calvino sobre o assunto:
“Crentes não oram com o objetivo de informar a Deus sobre coisas que lhe sejam desconhecidas, ou de instigá-Lo a cumprir Sua obrigação, ou de conclamá-Lo, como se estivesse relutante. Pelo contrário, eles oram a fim de que possam despertar a si mesmos com o intuito de buscá-Lo, exercitar sua fé na meditação em suas promessas, aliviar-se de suas ansiedades ao derramar-se em seu seio; em uma palavra, que possam declarar que têm esperança e esperam dele somente, para si mesmos e para os outros, todas as coisas boas.”
Considero essa opinião bastante coerente e posso me guiar por ela. A questão é quebrar o hábito que tenho de não fazer tão importante comunicação na minha vida. Este é um das principais falhas com o divino e pelo qual eu peço perdão, garantindo que vou procurar educar minha vontade e disciplinar meu comportamento para a prática diária da oração, encarando como uma alimentação para a minha alma, assim como o pão é o alimento do corpo.
Hoje é quarta-feira de cinzas, é o início da Quaresma e da Campanha da Fraternidade, tempo de penitência e conversão. É muita coisa para quem tenta seguir a vontade de Deus com disciplina.
São os 40 dias que Jesus passou no deserto. São 40 dias que podemos fortalecer, assim como Jesus, nosso compromisso com Deus, na luta contra as diversas formas de tentação, fazer as penitências pelos erros que cometemos, inconscientes ou não.
Tenho muito que corrigir no meu comportamento e talvez também nos pensamentos. Até o momento eu penso que estou sintonizado com a vontade de Deus, sinto no coração que o caminho que Ele me oferece já está escrito na minha consciência. Mas percebo também muitas falhas, principalmente nos relacionamentos íntimos cuja abertura se faz com o amor romântico que é tão contrário ao amor incondicional. Percebo que devo aproveitar esta Quaresma e me deslocar para a dimensão desértica da minha alma, longe de tudo e de todos, dentro de um contexto imaginativo, já que não posso fazer isso na realidade material como Jesus fez.
Devo avaliar com isenção todos os meus passos, ver o que está atrapalhando o caminhar mais rápido, os erros que cometi e como fazer a conversão do que é mal para o plano da bondade. Sei que todos esses erros que atrapalham a missão dada pelo Pai, estão dentro do meu próprio coração, a carga de egoísmo que herdamos da nossa condição animal. Sei que tenho que fazer esse teste íntimo, promover uma limpeza da alma com mais eficácia e ter coragem de apresentar com todo realismo às minhas companheiras, mesmo que isso seja motivo de sofrimento para todos. Afinal, Jesus não passou esses 40 dias no deserto como uma forma de lazer. Também Ele sofreu pressões de todos os lados, porém como o seu coração estava limpo, ele não titubeou em nenhum momento. Sei que eu não tenho essa competência do Mestre, sei que vou encontrar muitas falhas, mas a vontade de vencer todos esses obstáculos é o maior trunfo que levo para essa luta, além, é claro, da proteção de Deus e da compreensão de meus companheiros e companheiras de caminhada.