Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?
BM – Como Zorba disse: “Problema? A vida é problema. Só a morte não é problema.”
JC – As pessoas me perguntam: “Você é otimista a respeito do mundo com tudo que ele tem de terrível?” e eu respondo... “Sim, é fantástico. Exatamente do jeito que ele é.”
BM – Mas isso não leva a uma atitude passiva diante do mal, diante do erro?
JC – Você participa disso. O que quer que você faça é um mal para alguém.
BM – Explique isso para o público. Você disse que...
JC – Quando eu estive na Índia, conheci um homem chamado Sri Krishnamenon. Seu nome místico era Atmananda e vivia em Trivandrum. Fui a Trivandrum e tive o privilégio de me sentar cara a cara com ele, assim como estou sentado aqui com você. E a primeira coisa que ele me disse foi: “Você tem uma pergunta?” Porque o mestre lá sempre responde perguntas, ele não diz nada. Apenas responde. E eu disse: “Tenho. Uma vez que para o pensamento indiano todo o universo é divino, é uma manifestação da própria divindade, como podemos dizer não a qualquer coisa deste mundo? Como podemos dizer não à brutalidade, à estupidez, à vulgaridade, à irresponsabilidade?” E ele respondeu: “Você e eu devemos dizer sim. Eu soube, através de amigos que eram seus discípulos que esta foi a primeira pergunta que ele fez para seu guru. E durante uma hora, nós tivemos uma conversa maravilhosa sobre a afirmação do mundo. E isso me confirmou um sentimento que eu tenho “quem somos nós para julgar?” E me parece que esse é um dos grandes ensinamentos de Jesus.
BM – Percebo o que quer dizer num aspecto que certas doutrinas cristãs, o mundo deve ser desprezado, a vida só será redimida no além, nossa recompensa só vem do céu. E se você afirma aquilo que deplora, como você diz, estará afirmando o mundo, que é a nossa eternidade do momento.
JC – É isso mesmo. A eternidade não é um tempo futuro. A eternidade não é uma extensão longa de tempo. A eternidade não tem nada a ver com o tempo. A eternidade é a dimensão do aqui e agora que é eliminada se pensamos no tempo. Se você não conseguir isso aqui, não conseguirá em nenhum lugar. E a experiência da eternidade aqui e agora é a função da vida. Há uma forma maravilhosa que os budistas têm para o “Bodhisattva”. O “Bodhisattva” é aquele cujo ser, ou “satva” é iluminação, “Bodhi”. Aquele que percebe sua identidade com a eternidade e ao mesmo tempo, sua participação no tempo. E não é correto se afastar do mundo quando se percebe como é terrível. Mas perceber que esse horror é simplesmente a antessala de uma maravilha. E assim, voltar e participar dele. “A vida é sofrimento”, é o primeiro dito budista e é isso mesmo. A vida não seria vida se não tivesse a temporalidade que é sofrimento, perda, perda, perda.
BM – É uma observação pessimista.
JC -Você tem que dizer sim para a vida e dizer que é ótimo que as coisas sejam assim. Foi assim que Deus quis.
BM – Acredita mesmo nisso?
JC – É assim que as coisas são. Não creio que alguém tenha desejado, mas é assim que elas são. Há aquela linda frase de James Joyce... “A História é um pesadelo do qual estou tentando acordar.” E a maneira de acordar é não ter medo e reconhecer como eu fiz na minha conversa com aquele guru indiano, aquele professor de que falei, que tudo isso, assim como é, é como tem que ser. É uma manifestação da presença eterna no mundo. O final das coisas é sempre doloroso. A dor faz parte do simples fato de que o mundo existe.
BM – Mas se aceitamos isso, será que a conclusão final não é “Nesse caso, não vou tentar mudar nenhuma lei, lutar nenhuma batalha.”
JC – Eu não disse isso.
BM – Não será a conclusão lógica? As pessoas não seriam levadas ao niilismo?
JC – Essa não será necessariamente a conclusão a tirar. Você pode dizer: “Vou participar dessa luta, vou entrar no exército, vou à guerra”.
Costumo pensar que a eternidade é um tempo distante que consigo alcançar racionalmente, mas que jamais alcançarei pessoalmente ou espiritualmente. É uma criação de Deus onde somente Ele pode participar do início ao fim, conforme foi a estrutura dessa criação que a minha inteligência ou incipiente sabedoria não consegue alcançar. Mas agora Campbell abre uma nova perspectiva para a compreensão dessa eternidade, que ela tem sua existência no aqui e agora. Ele diz que a eternidade não é um tempo futuro, não é uma extensão longa de tempo, que não tem nada a ver com o tempo. Era isso justamente que fazia parte dos meus paradigmas. Mas Campbell raciocina que a experiência da eternidade é no aqui e agora, que é uma função da vida atual, que devemos perceber a identidade com a eternidade e a participação no tempo. É difícil absorver essa prática. Experimentar a eternidade total num pedacinho dela. Sempre me vem na cabeça que uns momentos atrás do outro virão para construir o amanhã a cada momento. Talvez tenha sido essa a iluminação alcançada pelo Buda. Não cheguei ainda nesse nível.
Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?
BM – Por falar em mitologias diferentes, vamos brincar um pouco. Tirei estes trechos do seu “Atlas”. Vou ler o Gênesis e, então, você identifica e lê o mito correspondente.
JC – Ah, sim!
BM – Gênesis 1: “E Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança, à imagem de Deus, o criou. Macho e fêmea, os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: crescei e multiplicai-vos.”
JC – Agora veja esse trecho de uma lenda do povo Bassari da África Ocidental. “Unumbotte fez um ser humano e seu nome era homem. Em seguida Unumbotte fez um antílope e o chamou de Antílope. Unumbotte fez uma serpente, chamada Serpente. E Unumbotte disse a eles – a terra ainda não foi trabalhada. Vocês precisam amaciar a terra onde estão sentados. – E Unumbotte lhes deu sementes de todos os tipos e lhes disse: plantem todas essas sementes.”
BM – Gênesis 1: “Viu Deus tudo que havia criado e eis que era muito bom.”
JC – Agora cito do Upanishad. “Então ele percebeu... na verdade eu sou essa criação, pois eu a expeli de mim mesmo. Dessa forma, ele se tornou essa criação e aquele que sabe disso se torna um criador nessa criação.” Este é o ponto principal. Quando se sabe disso, se identifica com o princípio criativo que é o poder divino no mundo, ou seja, em você mesmo. É muito bonito.
BM – O que acha que estamos procurando quando nos atemos a uma dessas teorias da criação, a uma das histórias da criação? O que estamos procurando?
JC – Acho que estamos procurando uma forma de experimentar o mundo onde vivemos. Que nos abra para a transcendência que o inspira. E que inspira a nós mesmos dentro do mundo. É isso que as pessoas querem. É isso que a alma pede.
BM – Então procuramos uma harmonia com o mistério que anima as coisas. Isso que chama de vasto campo de silêncio que todos compartilhamos?
JC – Sim, mas não apenas encontra-lo, mas encontra-lo no nosso próprio ambiente, no nosso mundo, reconhecê-lo, ter algum tipo de informação que nos permita ver a presença divina.
BM – No mundo e em nós mesmos.
JC – Na Índia, há essa saudação, o “anjail”. Você sabe o que significa? É a saudação de prece. Usamos para fazer nossas preces. Eles cumprimentam assim para saudar o deus que existe dentro de você. Eles têm consciência da presença divina. Quando você entra num lar indiano, você é uma divindade e você sente isso pela maneira como eles o tratam. É um tipo de hospitalidade que não existe quando há simplesmente uma pessoa e outra. É um reconhecimento da identidade.
BM – Mas as pessoas que contavam essas histórias, que acreditavam e agiam de acordo com elas, não estavam fazendo perguntas muito mais simples como: “Quem fez o mundo? Como o mundo foi criado?” Não são essas as perguntas que as histórias sobre a criação tentam responder?
JC – Não. É através daquela resposta que eles percebem que o Criador está presente no mundo inteiro. Entende o que quero dizer? Veja essa história que acabamos de ler: “Vejo que Eu sou esta Criação”, diz Deus. Quando você vê que Deus diz que Ele é a Criação e você é uma criatura, então esse Deus está dentro de você e do homem com quem você está falando. Há então essa percepção, dois aspectos de uma única divindade. É maravilhoso.
BM – Deixe-me perguntar sobre os aspectos comuns dessas histórias. O significado do fruto proibido.
JC – Existe um tema recorrente nas histórias folclóricas chamado “A Única Coisa Proibida”. Lembre-se de Barba Azul... “Não abra aquela porta e sempre tem alguém que abre. No Velho Testamento, Deus dá uma única coisa proibida e Ele sabe muito bem, agora estou interpretando Deus. Ele sabe muito bem que o homem vai comer o fruto proibido. Mas ao fazer isso, o homem inicia sua própria vida. A verdadeira vida começa com aquele momento.
BM – Vejo também em algumas histórias antigas, a tendência humana de sempre culpar alguém.
JC – Sim.
BM – Deixe-me ler o capítulo um de Gênesis e você lê a lenda dos Bassari. “E Deus disse: Comeste da árvore que te ordenei que não comesses? E o homem respondeu: A mulher que me destes por companheira me deu o fruto da árvore e eu o comi. E disse o Senhor à mulher: O que fizeste? E a mulher disse: A serpente me enganou, e eu comi. Essa história de culpar os outros começou cedo! Vejamos a lenda dos Bassari.
JC – Ela também é severa com a serpente. “Um dia a Serpente disse. Nós também devemos comer esses frutos. Por que passar fome?” E o Antílope disse: “Mas não sabemos nada sobre essa fruta.” Então o homem e sua mulher tomaram a fruta e a comeram. E Unumbotte desceu do céu e perguntou: “Quem comeu a fruta?” E eles responderam: “Fomos nós”. Unumbotte perguntou: “Quem disse que vocês podiam comer essa fruta?” E eles responderam: “Foi a Serpente”.
BM – É a mesma história.
JC – Pobre Serpente.
BM – o que concluiu do fato de que nessas histórias os atores principais acusam outro personagem de ser o causador da queda?
JC – Acontece que, de fato é a Serpente. E nas duas histórias, a Serpente é o símbolo da vida, que descarta o passado e continua a viver.
BM – Por quê?
JC – É o poder da vida, porque a serpente solta a pele, assim como a luz solta sua sombra. Na maioria das culturas, a serpente é positiva. Até a mais venenosa da Índia, a cobra, é um animal sagrado. E a serpente Naja, o rei-serpente Nagaraja é a divindade mais próxima do Buda. Porque a serpente representa o poder da vida no campo temporal de enfrentar a morte. E Buda representa o poder da vida no campo da eternidade, de viver eternamente. Vi uma coisa fantástica de uma sacerdotisa de Burma, que tinha de trazer chuva para seu povo, atraindo um rei-cobra para fora da toca e lhe dando três beijos no nariz. Ali estava a naja, o doador da vida, o doador da chuva, que pertence à vida, uma figura divina positiva, não negativa. As histórias cristãs invertem isso, pois a serpente foi a sedutora. Isso equivale a recusar-se a afirmar a vida. Segundo esta visão, a vida é o mal. Qualquer impulso natural é pecado, a menos que você tenha sido batizado. Ou circuncidado. Nesta tradição que herdamos. Por Deus!
BM - Por ter sido a mulher a tentadora, as mulheres tiveram que pagar um alto preço, pois na mitologia, em algumas mitologias, foram elas que provocaram a queda.
JC – Claro que foram elas. A mulher representa a vida. O homem só entra na vida através da mulher. E assim, é a mulher que nos traz para este mundo de polaridades, de pares de opostos, de sofrimento. Creio que é uma atitude muito infantil dizer não à vida com toda a sua dor. Dizer que é uma coisa que não deveria ter acontecido. Schopenhauer diz num dos seus maravilhosos capítulos, creio que é em “O Mundo Como Vontade e Ideia”, que “A vida é algo que não deveria ter acontecido. Ela é, na sua própria essência e caráter, uma coisa terrível, pois precisamos matar e comer para viver.” Ou seja, sempre no pecado, segundo critérios éticos.
Uma forte reflexão Joseph Campbell traz à minha consciência. O sentido de culpa e perversidade que joguei sobre a serpente devido os ensinamentos bíblicos, fazem eu rever a consciência. Caso não fosse a participação da serpente nessa história, induzindo Eva a comer do fruto proibido, do conhecimento do bem e do mal, da dualidade, nós não existiríamos. Até hoje viveriam Adão e Eva no paraíso, uma existência idílica, utópica, sem sofrimento, ou transformações. O tempo não existiria, nós não existiríamos. A serpente foi o elemento que deu condição de existência à vida, como nós a conhecemos hoje. Dessa forma, é justo pensar de forma positiva sobre a o comportamento da serpente, como faz a maioria das mitologias. Então, aquele ar de malignidade que vocifera aquele ex-presidente que se tornou bandido e ex-presidiário, não pode ser tão culpado na sua relação com a serpente. Mas, consideremos, tudo isso no campo simbólico, pois quando chega ao nível da realidade, tanto a peçonha da cobra quanto as iniquidades dos marginais são prejudiciais para nós, individual e coletivamente.
Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?
BM – O que não pode ser conhecido por um nome, na nossa frágil tentativa de revesti-lo com a linguagem.
JC – E na nossa linguagem, a palavra para designar o que é de mais transcendental é “Deus”.
BM - Lembra o que lhe passou pela cabeça na primeira vez que viu a Criação, de Michelângelo?
JC – Quando conheci essa obra minha noção de divindade não era tão pessoal. Essa ideia de Deus como um velho barbudo com um temperamento meio desagradável é uma forma materialista de se falar sobre a transcendência. É exatamente o oposto do que foi encontrado numa ilha no Golfo de Bombaim, algo que data do século 8. É uma caverna maravilhosa. Você sai de uma paisagem iluminada e entra lá. Caminhando na escuridão não se enxerga nada. Mas se você continuar andando devagar, aos poucos seus olhos se acostumam e você vê aquela coisa enorme, de uns seis metros de altura por seis de largura. A cabeça central é a máscara da eternidade. Essa é a máscara de Deus. A máscara da eternidade. Essa é a metáfora pela qual a eternidade deve ser vivenciada com esplendor. E as outras duas figuras ao lado de forma oposta? Toda vez que nos afastamos da transcendência chegamos ao campo dos opostos. Esses dois pares de opostos se apresentam como macho e fêmea, vindos desses dois lados. E o ser que comeu o fruto da árvore do conhecimento, não só do bem e do mal, mas do macho e da fêmea, do certo e do errado, da luz e da escuridão. Tudo nesse campo do tempo é dualístico. Passado e futuro, morto e vivo, ser ou não ser, é e não é.
BM - E qual o sentido de eles estarem ao lado da máscara de Deus, da eternidade? O que esta escultura nos diz?
JC – A máscara representa o centro e os dois representam os opostos. Sempre aparecem em pares. Tente colocar sua mente no meio. A maioria de nós coloca a mente no lado do bem, contra aquilo que achamos ser o mal. Creio que foi Heráclito que disse: “Para Deus todas as coisas são boas, certas e justas. Mas para o homem algumas são certas e outras não.” O homem está no campo do tempo e um dos problemas da vida é compreender os dois termos. Ou seja, eu conheço o centro. E sei que o bem e o mal são simples manifestações temporais.
BM – Existem mitos mais verdadeiros que outros?
JC – Eles são verdadeiros em sentidos diferentes. Entende? Há toda uma mitologia baseada na compreensão que transcende o dualismo. A nossa mitologia é baseada no dualismo. Assim, nossa religião tende a enfatizar a ética, pecado, expiação, certo e errado. Veja, Eva começou com pecado, ou seja, saindo fora da zona mitológica do Paraíso, onde não existe o tempo. E o homem e a mulher nem sabem que são diferentes um do outro. Lá, os dois são apenas criaturas. E Deus e o homem são praticamente a mesma coisa. “Ele caminha no frescor da tarde no jardim onde estamos.” Eles comem a maçã, vem o conhecimento dos pares opostos e o homem e a mulher cobrem suas vergonhas. Eles são diferentes. Deus e o homem são diferentes. E a natureza está contra o homem. Certa vez, assisti uma palestra incrível de Daisetz Suzuki, aquele maravilhoso filósofo Zen que esteve aqui quando tinha mais de 90 anos. Começou a ensinar na Suíça, e eu o ouvi em Ascona. Ele ficou de pé e disse: “Deus contra o homem, o homem contra Deus; homem contra natureza, natureza contra o homem; natureza contra Deus, Deus contra natureza. Que religião mais engraçada.” Nas outras mitologias, a pessoa se coloca em sintonia com o mundo. Mas se o mundo é uma mistura do bem e do mal, você não se coloca em sintonia com ele. Você se identifica com o bem e luta contra o mal. E esse é um sistema religioso do Oriente Médio depois da época de Zaratustra. Está presente na tradição bíblica. No cristianismo, assim como no islamismo. É esse negócio de não ser uno com a natureza. E até falamos com certo desprezo das “religiões da natureza”. Com essa queda, a natureza foi corrompida. É um mito que corrompe o mundo inteiro para nós. E cada ato espontâneo é pecaminoso, porque a natureza é corrupta e tem de ser corrigida, não se pode ceder a ela. Surge uma civilização totalmente diferente, um modo de vida diferente conforme o seu mito, se ele vê a natureza decaída ou como sendo ela mesma, uma manifestação da divindade e do espírito como revelação da divindade que é inerente à natureza.
BM – Essa ideia indiana antiga da natureza como reveladora da divindade porque ela nos impediria de dominar a natureza?
JC – Mas essa é a condenação bíblica da natureza que os americanos herdaram de sua religião e trouxeram consigo. Deus não está na natureza. Deus é separado dela e a natureza não é Deus. Essa distinção entre Deus e o mundo não existe na base do hinduísmo, nem do budismo. Nunca me esquecerei de uma experiência que tive no Japão. Estar num lugar que nunca ouviu falar da queda do Jardim do Éden. Estar num lugar onde um texto xintoísta diz que “Os processos da natureza não podem ser malignos.” Onde cada impulso natural não deve ser corrigido, mas sim, sublimado, embelezado. E aquele maravilhoso interesse pela beleza natural e pela cooperação com a natureza, a ponto de em jardins japoneses você não saber onde começa a natureza e onde termina a arte. Isso para mim foi uma tremenda experiência e é uma mitologia diferente.
Essas conclusões de Joseph Campbell me fazem pensar no conflito que existe hoje entre o atual Papa e os padres que seguem a tradição da Igreja Católica, de seguir as lições do Cristo, identificando e combatendo o mal, levando o amor e a ética nos relacionamentos, num clima de fraternidade, acusando com veemência todas as iniquidades, principalmente a hipocrisia. O Papa Francisco tende a seguir os caminhos da modernidade, do positivismo, sem fazer a distinção severa entre o bem e o mal, considerando todos como irmãos, assim como o Pai considera todos como filhos. Posso concluir que o pensamento e comportamento do Papa se aproxima mais da essência de Deus, enquanto os padres tradicionais se aproximam mais da essência do Cristo. Parece um paradoxo, mas, de acordo com Campbell estão correto. Em Deus encontramos a Unidade, em Jesus o Dualismo. E nós? Seguimos Deus ou a Jesus? Parece que não temos cacife suficiente para seguir a Deus, parece mais prático e seguro seguir Jesus e seu dualismo, e construir o Reino de Deus como ele ensinou, deixando de fora aqueles que não querem cumprir a lei do amor, da justiça, da solidariedade, e só pensam nos crimes, iniquidades, corrupções. Não tenho sabedoria suficiente para entender a justiça dessas iniquidades que o Pai reconhece dentro de um mesmo conceito de utilidade. Mas, acredito que Ele queira que eu siga os ensinamentos do Mestre que Ele nos enviou para ensinar este caminho de Verdade e Vida.
Como posso do amor que sinto eu falar
Se palavras não encontro em minha mente
Se o coração sem mente quer sonhar
Se do mundo no qual vivo estou ausente?
Ah! Como posso dizer-te, alma querida
Se o que sinto de amor, é mesmo amor
Ou um delírio que me enche de ferida
Um grito de socorro ao Criador?
Ah! Como eu queria do amor ser fiador
E que ninguém reclamasse sua falta
Ou de saudade chorasse amarga dor
Eu cumpriria meu dever com alegria
Mesmo em frente às luzes da ribalta
Meu coração com certeza entregaria
Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?
BM – Quando Joseph Campbell era criança, seu pai o levou ao museu de História Natural de Nova Iorque e ele ficou fascinado pelos totens e máscaras. Ele se perguntava: “Quem os fez?, o que significavam?” Começou a ler tudo sobre índios, seus mitos e lendas. Aos 10 anos, já começava a busca que o tornou um dos maiores estudiosos de mitologia e um dos professores mais interessantes do nosso tempo. Diziam que ele dava vida aos ossos do folclore e da antropologia. Seu objetivo era compreender o poder das histórias e lendas da raça humana. Principalmente os temas comuns e princípios obscuros que estimularam nossa imaginação através dos tempos. O Deus ciumento de Abraão não é o deus das histórias da Índia que não mostra nem ira, nem piedade. Mas mesmo que as tradições místicas sejam diferentes segundo Campbell, elas coincidem num aspecto. Despertam para uma consciência mais profunda do ato de viver e nos guiam por dificuldades e traumas, do nascimento até a morte. Certa vez, Campbell disse aos alunos da Universidade Sarah Lawrence... “Se vocês realmente querem ajudar este mundo precisam ensinar como viver nele.” Foi isso que ele ensinou. Nos últimos verões da sua vida, em muitas conversas gravadas na biblioteca do estúdio Lucasfilm na Califórnia conversamos sobre como a mitologia ainda pode despertar numa forma de medo, gratidão e até êxtase.
BM – Por que deveríamos nos preocupar com os mitos? O que eles têm a ver com a minha vida?
JC – Minha primeira resposta seria: “vá em frente, viva sua vida, é uma vida boa e você não precisa nada disso.” Não acho que as pessoas devam se interessar por certos assuntos só por serem considerados importantes e interessantes. Acredito que somos envolvidos pelo assunto. Mas você pode achar que com uma boa introdução ao tema esse assunto o envolva. E como eu posso ajuda-lo quando você for envolvido? Essas informações vindas de épocas antigas que têm a ver com os temas que sempre ajudaram a vida do homem, ajudaram a construir civilizações e formar religiões ao longo dos milênios, têm a ver com profundos problemas internos, mistérios internos e umbrais internos de passagens. E se você não conhecer os sinais ao longo do caminho terá que descobrir tudo sozinho. Mas depois que o assunto lhe envolve, há sempre uma sensação de uma ou outra dessas tradições de informação, de uma vivificação profunda e enriquecedora que você não vai querer abandoná-la.
BM – Então, mitos são as histórias da busca feita através dos tempos, do significado, do sentido da vida, do significado da vida, para tocar a eternidade, para compreender o mistério, para descobrir quem somos.
JC – Dizem que todos nós buscamos um sentido para a vida. Não acho que estejamos realmente buscando isso. Acho que buscamos a experiência de nos sentirmos vivos de tal forma que nossas experiências no nível puramente físico tenham ressonâncias internas no mais profundo do nosso ser e da nossa realidade. E assim chegamos a sentir realmente o êxtase de estarmos vivos. No fundo a questão é essa. E é isso que essas pistas nos ajudam a encontrar dentro de nós mesmos.
BM – Os mitos são pistas?
JC – Os mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana.
BM – Aquilo que somos capazes de conhecer dentro de nós?
JC – Sim.
BM – E de experimentar dentro de nós? Gostei da mudança da definição de mito, de busca do significado para experiência do significado.
JC – A experiência da vida. A mente tem a ver com o significado. Qual é o significado de uma flor dentro de nós? Há uma história zen sobre um sermão de Buda, de uma vez em que o seu grupo estava todo reunido e ele simplesmente mostrou uma flor. Houve apenas um homem, Kashyapa, que lhe fez um sinal com o olhar mostrando que compreendia o que aquilo significava. Qual o significado do universo? Qual o significado de uma pulga? Eles simplesmente existem. Estão aqui. É isso. E o significado de você mesmo é que você está aqui. Mas estamos tão absorvidos em fazer coisas, em atingir objetivos de valor externo, que esquecemos que o valor interno, o êxtase, associados ao simples fato de estar vivo é que importam. Queremos pensar em Deus. Ora, Deus é um pensamento, é um nome, é uma ideia, mas que se refere a algo que transcende qualquer pensamento. O mistério supremo do ser está além de toda categoria de pensamento. Meu amigo Heinrich Zimmer costumava dizer “As melhores coisas não podem ser ditas. Porque elas transcendem o pensamento. As segundas melhores coisas são mal compreendidas, pois são pensamentos que se referem ao que não pode ser pensado. E ficamos presos com os pensamentos. As terceiras melhores coisas são as que nós falamos.” Entende? E o mito está nesse nível de referência onde metáforas se referem às coisas absolutamente transcendentais.
BM – O que não pode ser conhecido.
JC – O que não pode ser conhecido.
Interessante essa perspectiva mental que o importante é sentir que estamos no mundo, que vivemos nossa realidade, qualquer que seja ela. Parece ser o sentido primordial, ficando todos os demais como reflexos dele, como o luar é o reflexo da luz que recebe do sol. A minha sensação de estar no mundo deve ser mais importante que a ida a um movimento social que visa um objetivo comum, como este acontecido ontem no 7 de setembro. Parece um conceito estático e que se os maus intencionados se movem no sentido de nos explorar, ficar inerte na condição de ficar na contemplação de estar vivo como o mais importante, parece carregar uma incoerência. Sentir que estou vivo e dar um grande significado a isso é importante, mas sem esquecer dos deveres éticos que um ser vivo no mundo natural deve cumprir para que sua existência não fique maculada pela covardia, preguiça ou ingratidão.