O deserto serviu como prova para Jesus de que Ele estava capacitado para cumprir sua missão. É o lugar de encontro com Deus, mas também onde está exposto às tentações de Satanás que é o rival, que procura frustrar ou desvirtuar o projeto de Divino. Jesus supera a prova. Antes de começar sua atividade messiânica, tem de ser provado e comprovado. Convive pacificamente com os animais selvagens, os anjos estão a seu serviço, assim como até hoje, os anjos estão a serviço dos filhos de Deus. Do deserto Jesus volta à Galiléia para começar aí seu ministério de proclamar a boa notícia, de que está próximo o reinado efetivo de Deus, do exercício do seu poder real na história. Em Jesus, Deus já está operando, e por Deus, Jesus se oferece. Orienta para a ruptura com os interesses egoístas através do arrependimento e para o desenvolvimento da fé. Jesus passa a ser o único capaz de restaurar a obra da criação e a regeneração do ser humano, através de suas lições de amor, refazer o coração do homem.
Hoje estou aqui, 2013 anos depois, estudo as lições desse Homem, que fala de um Deus do qual passei a acreditar sem ter mais dúvidas. Vejo que milhões de pessoas no mundo todo conhecem os seus ensinamentos, chegam até a divulgá-los como Ele orientou, mas percebo que a prática do Amor Incondicional como única lei para o estabelecimento do Reino de Deus, fundamento de Sua missão, ainda não está sendo cumprida nos relacionamentos básicos que estruturam nossa sociedade.
Com todo o ensinamento que recebi dEle, minha mente ficou permeável à vontade de Deus. Foi estruturada dentro dela o sentido de responsabilidade para a realização de uma tarefa que vejo ser necessária para o cumprimento dos ensinos do Cristo e da realização da vontade de Deus: a realização prática do Amor Incondicional. Vejo que isso é o que Deus quer de mim, para viabilizar a Boa Nova que Jesus veio anunciar e nos ensinar a fazer com seu próprio sacrifício.
O tempo que estou passando no meu deserto mental, na minha comunhão com Deus, veio logo a mente em primeiro plano esse compromisso. Vejo com clareza que todas as pessoas que Ele colocou ao meu lado, em todos os níveis de relacionamento, principalmente aquelas que se candidatam a me acompanhar nessa empreitada, não podem ficar acima desse projeto e exigirem uma relação exclusiva, pois isso seria a falha total na essência da minha missão. Todos que estão ao meu lado devem saber a essência da minha missão, e por essa essência eu deverei ser cobrado. Nada que extrapolar ou se desviar do Amor Incondicional eu considerarei, pois meu compromisso com o Pai é a aplicação completa, sem qualquer tipo de desvio, do Amor Incondicional.
Muitos homens e mulheres, desde a antiguidade cristã, escolheram imitar Jesus, nos desertos do Egito, da Palestina, em lugares solitários, montes e vales remotos. Assim surgiram os mosteiros, conventos, ordens contemplativas e tantas casas de retiros em toda a parte até a atualidade.
O deserto que a Quaresma recomenda é um convite para todos que creem em Deus, para todos que buscam a Verdade absoluta, para todos que se esforçam para viver o Amor Incondicional.
Há uma exortação feita por Santo Anselmo que nos orienta como aproveitar melhor a Quaresma: “Pobre mortal, foge por breve tempo de tuas ocupações, deixa um pouco os teus pensamentos tumultuados. Deixa para traz, nesse momento, graves preocupações e põe de lado tuas fadigosas atividades. Sê, um pouco, atento a Deus e nEle repousa. Entra no íntimo de tua alma. Exclui tudo, menos Deus e aquele que te ajuda a procurá-Lo. Fecha a porta e diz a Deus: procuro o Teu rosto. O Teu rosto eu procuro, Senhor.”
Assim, o deserto tornou-se um modo de viver a Quaresma, fazer um pouco de vazio e de silêncio em torno de nós, reencontrar o caminho do nosso coração, evitar tanto o barulho e as solicitudes externas para entrar na profundidade do nosso ser. A vontade de Deus em nossa consciência é abundante para nos propor o caminho, para fazer o bem e evitar o mal, para nos levar a revisão de vida, à conversão se for necessária. O Evangelho nos diz que o Espírito, do qual Jesus está repleto, o impele para o deserto; o Filho de Deus se deixa levar pelo Espírito. Vale lembrar a carta de Paulo aos Romanos: “Todos os que se deixam levar pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.”
Com todas essas orientações considero importante eu entrar no meu deserto mental nesse período próprio da Quaresma. Não posso deixar o trabalho, minhas responsabilidades como Santo Anselmo nos exorta, mesmo que seja por um período de 40 dias. Mas posso, sempre que possível, privilegiar o silêncio em torno de mim e a meditação; deixarei os pensamentos tumultuados e farei o que devo fazer sem tantas complicações na cabeça, de alguém, assim ou assado não gostar, de querer fazer a vontade do outro e esquecer a vontade de Deus; excluir todo tipo de preocupação da cabeça e deixar o espaço para o rosto de Deus se manifestar em minha consciência, dizer da Sua vontade e me orientar na correção de rumos necessária.
Procurarei experimentar esse deserto mental nestes 40 dias de Quaresma, em busca da vontade de Deus, seguindo os passos do meu irmão mais amado e procurando cumprir minha missão.
Podemos entender a existência de dois desertos: um deserto físico e um deserto espiritual. No tempo de Jesus Ele foi para um deserto físico e vivia cercado de um deserto de ignorância da verdade, da justiça e do amor incondicional.
No Evangelho de Marcos, 1:12-15, diz que “Naquele tempo, o Espírito levou Jesus para o deserto, onde ficou durante quarenta dias, e foi tentado por Satanás.” Jesus tinha apenas acabado de ser batizado no rio Jordão por João Batista, recebeu a investidura messiânica, quando se ouviu a voz do Pai: “Este é o meu filho muito amado, escutai-o.” Foi enviado para anunciar a Boa Nova a todos, curar os corações feridos e pregar o Reino de Deus. Antes, porém, Ele jejuou, rezou, meditou, lutou, em profunda solidão e silêncio.
Reconheço que o Pai quando diz “Este é o meu filho muito amado” vem uma ponta de ciúme em meu coração. Afinal eu também não sou o seu filho e também não posso ser muito amado? Mas logo minha consciência faz as devidas correções: “Você também é considerado por sua mãe como o filho muito amado. Todos os seus irmãos tem inveja dessa condição. Mas porque isso é assim. Você é um filho obediente, demonstra carinho e interesse pelo bem estar de todos, jamais disse em resposta a uma advertência uma palavra grosseira. Comparado aos seus irmãos você tem uma estatura moral superior, justifica que o coração de sua mãe com justiça o considere o muito amado. Da mesma forma é Jesus com relação ao Pai. De todos os filhos existentes no mundo, Jesus é aquele mais obediente e disposto a fazer a Sua vontade, mesmo que fazendo assim sacrifique a própria vida. Tenho que reconhecer que não tenho ainda essa competência de Jesus, devo reconhecer que Ele merece ser o muito amado filho de meu Pai em comparação a todos nós, seus irmãos.
Meus irmãos absorveram esse julgamento que minha mãe fez sobre mim, me respeitam e seguem minha orientação. Devo também seguir esse exemplo. Devo reconhecer a autoridade moral que Jesus possui e seguir suas orientações, mesmo que o Pai tenha me dado alguma tarefa específica, com certeza será um complemento daquilo que foi ensinado por Jesus.
Esse tempo da Quaresma é propício para essas reflexões e mesmo não sendo possível ir ao deserto físico para ter a experiência que Jesus teve, posso reproduzir em minha mente o deserto espiritual e passar por experiências parecidas.
Está escrito na Bíblia: “E aconteceu, à hora da tarde, que Davi se levantou do leito e andava passeando no terraço da casa real, e viu do terraço a uma mulher que se estava lavando; e era esta mulher mui formosa a vista (2 Samuel 11:2)”
Aqui Davi, o grande devoto de Deus, tronco hereditário de onde viria surgir Jesus, sofreu a mais cruel derrota da parte do inimigo da nossa alma, nosso próprio corpo. Verificamos assim que o crente mais devoto possui um coração corrupto, totalmente aberto às concupiscências da carne, e portanto tem de cuidar das entradas de seu coração, particularmente no que se refere aquilo que os olhos contemplam. Não é que esse instinto sexual que pode levar à luxúria seja um vilão desalmado e sem utilidade. Esse instinto sexual garante a preservação da espécie, a continuidade da vida biológica no mundo material. Portanto, essa engenharia de Deus, que nos trás tão forte sensação de prazer, o orgasmo, é de fundamental importância. Esse prazer que gratifica profundamente o homem e mulher, garante o interesse de ambos na prática que tem como consequência a geração do filho. Portanto, o ato sexual tem conotação divina na sua origem, mas a luxúria que deriva dele, procura com exclusividade a obtenção do prazer, sem nenhuma outra preocupação. Não considera a geração do filho, não se importa com o interesse da parceira, não avalia as circunstâncias e o prejuízo que pode causar a terceiros.
Reconheço a força do instinto sexual como uma grande motivadora do comportamento animal em geral e humano em particular. É ela que gera o amor romântico que se distancia tanto do amor incondicional; que forma os núcleos familiares exclusivistas, que favorece os privilégios grupais de toda natureza; que viabiliza os graves desníveis sociais com a criação dos miseráveis milionários e poderosos e miseráveis pobres e famintos; que fomenta guerras e revoluções em todos os rincões do planeta.
Não posso evitar a geração dessa força em meu organismo e o desejo que ela provoca em minha mente. Porém eu posso evitar que meu comportamento degenere em luxúria. Posso fazer como a maioria dos santos fizeram, sublimar esse desejo em outra atividade voltada para a vontade de Deus, privilegiando o celibato. Mas também posso usar essa força e a colocar a serviço do amor incondicional. Dessa forma o romantismo não é privilegiado como a prioridade, as relações se formam na base da inclusão onde todos que se sintonizem afetivamente podem aprofundar o relacionamento até onde o amor incondicional permitir. Agindo assim, o potencial de prazer se torna viável no contexto global de nossa qualidade de vida.
Esta é uma das minhas principais falhas, na comunicação com Deus, com Jesus e com todos os seres espirituais que estão prontos a nos ajudar em nossa caminhada: a oração. Apesar de saber da sua importância, sempre estou esquecendo o momento de a fazer e quando lembro as palavras não chegam a minha mente. É como se houvesse um bloqueio devido ao endurecimento da minha mente com os estudos materialistas, por ter vivido tanto tempo afastado do amparo do Pai e até duvidando da sua existência.
Antes eu até imaginava que não precisava rezar para Deus, pois se Ele existe realmente, sabe de tudo que precisamos e nos dará quando for necessário mesmo. Ele sabe de tudo antes de nós pedirmos. Ele não é ignorante acerca de nossas necessidades nem hesitante em atendê-las. Por que então devemos orar? Qual a utilidade da oração? Era assim que eu pensava e é isso que me bloqueia até hoje, mesmo tendo informações bastante coerentes que defendem a prática da oração, como a opinião de Calvino sobre o assunto:
“Crentes não oram com o objetivo de informar a Deus sobre coisas que lhe sejam desconhecidas, ou de instigá-Lo a cumprir Sua obrigação, ou de conclamá-Lo, como se estivesse relutante. Pelo contrário, eles oram a fim de que possam despertar a si mesmos com o intuito de buscá-Lo, exercitar sua fé na meditação em suas promessas, aliviar-se de suas ansiedades ao derramar-se em seu seio; em uma palavra, que possam declarar que têm esperança e esperam dele somente, para si mesmos e para os outros, todas as coisas boas.”
Considero essa opinião bastante coerente e posso me guiar por ela. A questão é quebrar o hábito que tenho de não fazer tão importante comunicação na minha vida. Este é um das principais falhas com o divino e pelo qual eu peço perdão, garantindo que vou procurar educar minha vontade e disciplinar meu comportamento para a prática diária da oração, encarando como uma alimentação para a minha alma, assim como o pão é o alimento do corpo.