Estava mais uma vez na rodoviária esperando o ônibus para retornar para casa. Na mesma rodoviária onde de outra vez vi uma garota que despertou simpatia e que senti que poderia evoluir para uma possível relação afetiva. Dessa vez era uma senhora idosa, de pés tortos e de hálito alcoólicos. Estava lendo um livro e ela sentou perto de mim. Continuei a ler sem dar muita atenção a uma conversa que ela queria iniciar...
“... Deus é amor. Deus tem tudo para dar a nós. Deus cura os cegos, os paralíticos, tudo em nome de Jesus, não é meu filho?” – e jogava a cabeça sobre meus ombros; sentia mais forte o hálito alcoólico. Ao mesmo tempo eu pensava que devia exercer a caridade com ela, de lhe dar um pouco de atenção, de tolerar a sua embriaguez, afinal ela estava abordando um assunto importante, a espiritualidade, o poder de Deus.
“...minha filha diz, mãe você gosta de crente? Eu disse que gosto de Jesus! Você viu na televisão um crente curando em São Paulo? Ele curou os olhos de uma criança... mas isso é demais! Tinha uma criança aleijada, ele chamou e ela veio... mas isso é demais, não é? Quem pode fazer isso é Jesus!”
Ela viu que eu não interagia com ela, que agora eu estava escrevendo na contra capa do livro as suas palavras para repetir aqui neste blog. Enquanto isso eu ficava a pensar na caridade que eu estava dando a essa pessoa. Ás vezes eu caminhava pelas ruas, pelo campo, via pássaros e ficava a desejar que eles viessem até mim, que pousassem no meu ombro assim como faziam com São Francisco. Mas agora eu tinha ali uma cabeça que pousava vez de quando no meu ombro de um ser vivo muito mais importante para Deus do que um simples pássaro. Era uma pessoa, um ser humano e isso não me trazia nenhum tipo de orgulho. Um pássaro poderia significar para quem visse, o meu alto grau de espiritualidade; aquela cabeça de uma bêbada poderia causar censura, uma tolerância inaceitável aos bons costumes. Via assim uma série de conflitos incompatíveis com a Caridade que eu tanto desejo exercer.
Ela ficou um tempo sem dirigir a palavra para mim. Ficava a murmurar: Deus é bom, Deus é bom, Deus é bom... tudo que temos é a vida para dar a Ele; Ele tem tudo para dar a nós... o que pede nós “ver”... depois voltou-se para mim:
- Eu gosto de conversar com uma pessoa como o senhor. Quanto anos o senhor tem?
- 59
- Eu tenho 67 anos, sou de 1945... eu não minto não!
Solta uma gargalhada. Olha com mais atenção para mim. Pergunta o que estou fazendo, o que estou escrevendo, se é a palavra de Jesus. Digo que pode ser. Ela olha com cuidado os escritos. Sei que mesmo ela sendo alfabetizada, não vai conseguir ler minha letra garranchosa. Diz que é bonitinho.
Vejo que chega o ônibus. Pego minha bolsa apressado e me despeço com palavras secas: - Chegou meu ônibus. Tenho que ir. Tchau.
Fiquei a avaliar o meu grau de caridade para com aquela senhora. Fiquei mais preocupado em escrever do que conversar com ela. Permiti que ela se apoiasse no meu ombro sem a repudiar, foi um avanço. Sem essa determinação em ser caridoso, eu teria saído do banco e deixado a bêbada chata entregue a própria sorte. Tive um desempenho um pouco melhor do que no último teste. Mereço um três.