O mundo vive uma crise de solidariedade que posso constatar ao abrir a janela de minha casa e ver crianças, adultos e idosos andrajosos, maltrapilhos, esfomeados e drogados, a pedirem ou roubarem o que necessitam. Posso constatar ao ligar a televisão ou pegar o jornal e ver os níveis de corrupção que são descobertos pelo mundo, das guerras externas e das revoluções internas que pipocam em todos os pontos do planeta, das armas de destruição que são construídas e aperfeiçoadas, dos treinamentos militares que são realizados para melhorar o comportamento tático de destruir o próximo que está distante ou que pensa de forma contrária.
O documento do Papa Francisco lembra que na comunidade cristã primitiva a família se manifestava como “Igreja Doméstica”, nos chamados “códigos familiares” das Cartas apostólicas neo-testamentárias. A grande família do mundo antigo é identificada como o lugar de solidariedade mais profunda entre esposas e maridos, entre pais e filhos, entre ricos e pobres. Em particular a Carta aos Efésios identificou um amor nupcial entre o homem e a mulher “o grande mistério” que torna presente no mundo o amor de Cristo e da Igreja.
Quando comparo esse trecho do texto papal com a aplicação do Amor Incondicional que é a lei de Deus, vejo uma grande confusão e perda de foco, de quem é principal e de quem é secundário nessa história. Posso até concordar que a grande família do mundo antigo seja identificada como o lugar de solidariedade, explicita, mas não profunda, entre esposas e maridos, entre pais e filhos... jamais entre ricos e pobres!
Digo assim, pois não vejo a solidariedade da esposa ou do marido ir além daquilo que cada um considera também positivo para si. Um exemplo bem claro é na história de Abraão e Sara que encontramos na Bíblia. Sara percebendo que não podia mais dar um filho a Abraão, e que este tanto necessitava para passar o bastão do seu clã, resolve aconselhar o marido a fecundar a criada, Agar, e assim ter o desejado filho com ela. Acontece que Sara logo em seguida tem o seu filho e termina por induzir Abraão a expulsar Agar com o filho dela da tribo para que o primogênito de Abraão não ameaçasse a liderança da comunidade após a morte do pai. Abraão constrangido faz a vontade da esposa e expulsa seu filho e a mãe para o deserto. Onde está a solidariedade de Sara por Abraão que quebrou os seus princípios contra a Lei do Amor e teve que obedecer aos caprichos egoístas da esposa? Onde está a solidariedade de Abraão por Agar que apesar de humilde e escrava aceitou ser a mãe de um filho para contentar seu senhor e a sua esposa? Por isso eu afirmo que essa solidariedade observada entre marido e esposa desde as famílias mais antigas é apenas um verniz comportamental. Quando as circunstâncias ameaçam os interesses de cada um, logo as exigências são feitas de forma abusiva contra os interesses de quem esteja na frente. O amor ao próximo como Jesus ensinou não existe!
A mesma forma acontece na relação dos pais com os filhos. Os pais criam e educam os filhos com o objetivo principal de suprirem as suas necessidades, fisiológicas ou psicológicas, que façam a sua vontade e muitas vezes desconsideram ou são plenamente contrários porque não se ajusta ao que eles pensam da vida. Por outro lado, os filhos quando crescidos e independentes assumem os caminhos de sua vida sem lembrar da importância dos pais na sua formação. Onde está a solidariedade nesse contexto? Mais uma vez não consigo a observar além do verniz comportamental.
Agora, dizer que existe solidariedade entre ricos e pobres no contexto familiar, considero um grande contra-senso. Logo, a existência da pobreza é uma prova da falta de solidariedade da sociedade como um todo e das famílias em particular. A riqueza geralmente é formada sobre o abuso da ignorância e da fragilidade do próximo. A caridade que observamos nas famílias pretende atenuar a fome e a nudez dos miseráveis, mas nada faz para eliminar seus privilégios, deixar de explorar a ignorância e a fragilidade. Isso pode existir mesmo dentro das famílias, quanto mais fora dos seus limites consangüíneos. Mais uma vez não vejo solidariedade!
O texto do Papa Francisco continua a mostrar miopia ao dizer que identificou na Carta aos Efésios, no amor nupcial entre o homem e a mulher, “o grande mistério” que torna presente no mundo o amor de Cristo e da Igreja. Tire a possibilidade de relação sexual entre os nubentes para ver quantos evoluem até o casamento! Então este é “o grande mistério” que está presente no amor de Cristo e da Igreja? Uma relação sexual? Temos que convir que esse amor que Cristo veio nos ensinar está muito além de uma relação sexual, mesmo porque Ele não nos deu nenhuma indicação de que esse amor nupcial, sexual, seria fundamental para a criação do Reino de Deus. O que Ele ensinou era que o fundamental é o Amor Incondicional e que ele deve ser desenvolvido a partir dos nossos próprios corações, após fazer a faxina do egoísmo que nascemos com ele.