É interessante como fatos do passado voltam ao presente com grande carga emocional. Foi o que aconteceu no último domingo. Reunido com os parentes inclusive minha ex-primeira esposa, ela aproveitou o momento de recordação quando foi entrevistada pela minha sobrinha sobre um trabalho da escola e que tinha que falar sobre mim, para lembrar-se de fatos pitorescos de nossa vida em comum. Depois, sentados à mesa numa conversa informal, ela relembrou um fato marcante de nossas vidas.
Nós estávamos casados e morávamos com a família dela. O único arrimo para aquela família era ela e quando casei eu me uni a esse esforço de sobrevivência deles. Entre a família dela existiam três moças solteiras que dormiam no mesmo quarto, duas de menor idade e a outra mais velha, que já trabalhava no comercio e tinha um relacionamento frustrado com um namorado. Essa frustração atingia o seu lado emocional com forte impacto e muitas vezes eu saia com ela para ajudá-la nesse aspecto. Acontece que eu também possuía meus desejos masculinos e que não deixava de focar na interação sexual com ela. Mesmo assim eu reprimia esses desejos, pois percebia que não era o momento propício, uma vez que ela estava tão profundamente envolvida com aquele seu namorado que não se abria para outras perspectivas. Eu também não tinha a habilidade que tenho hoje de conduzir tais transtornos emocionais na perspectiva de novos horizontes. O que eu sempre tive e mantenho até hoje é o sentimento de não prejudicar ninguém, pelo contrário, de ajudar no máximo de minhas forças.
Outro contexto que surgia era à noite no período do sono. Eu ficava até tarde assistindo filmes na sala enquanto elas estavam dormindo no quarto com portas abertas e ao meu alcance. Nesse momento voltavam na minha mente os pensamentos sexuais com pessoas que estavam ali à minha disposição. Com as duas menores existia o bloqueio forte da consciência, pois elas dependiam de mim como minhas filhas e eu não poderia induzi-las em algo que possivelmente iria trazer mais malefícios para elas do que benefícios. Porém com a mais velha era diferente. Ela era uma pessoa adulta, tinha o seu trabalho fixo e independência financeira; se morava conosco era por conveniência dela. Alem disso passava por sérias dificuldades afetivas onde era desconsiderada pela pessoa que ela amava. Não a tratava bem e fazia de tudo para mantê-la afastada. Ela sofria intensamente por sentir esse desprezo e não poder fazer nada. Eu sabia de tudo isso e chegava a ficar sozinho com ela no meu carro, em momentos que eu pretendia lhe ajudar a superar esse problema. Mesmo com desejos por ela nunca cheguei nesses momentos a falar ou demonstrar, de qualquer forma, o que eu sentia.
Foi dentro dessa conjuntura que eu passei a ter conflitos cada vez mais fortes nas noites que eu ficava assistindo televisão na sala e ela dormia no quarto. O desejo voltava com intensidade e eu sabia que ela dormia naquele quarto, carente de afeto, de sexualidade. Eu estava ali, mesmo não sendo a pessoa que ela desejava, poderíamos compensar nossos desejos recíprocos de forma discreta que só a nós dissesse respeito; que se eu tivesse no lugar dela gostaria de ter uma proposta como a que eu queria apresentar, mesmo que decidisse não aceitar. Esses eram os argumentos que meus desejos plantavam nos meus pensamentos. Por outro lado existia o contraditório, que eu era respeitado na casa e que aquilo seria uma afronta a todos.
Esse dilema se repetia noite após noite... O argumento que eu colocava para desarmar o contraditório era que eu estava correto em apresentar a ela os meus desejos e que era ela quem deveria decidir se aceitava ou não, sem qualquer tipo de retaliação em caso de negativa, como é do meu caráter; que eu seria um covarde tendo esse tipo de pensamento na sua essência benigno, e eu deixasse de expressá-lo com medo dos preconceitos e maledicências que pudessem surgir, mesmo porque, se tudo fosse discreto, pelo sim ou pelo não, ninguém iria saber.
Dessa forma, fustigado por essas argumentações que no fundo eu considerava positivas, encontrei a coragem de ir uma noite até sua cama. A despertei com cuidado para fazer o convite, mas não considerei o grau de reatividade que ela podia apresentar. Acordou logo e se mostrou assustada, sem a mínima condição de conversar, mesmo sabendo que era eu, o amigo que muitas vezes estava ao seu lado conversando e tentando aliviar o seu sofrer. Acordou toda a casa e de repente aconteceu o que o contraditório tentava me advertir. Perdi o respeito por todas, pois se sentiram afrontadas e ameaçadas. Ninguém foi capaz de avaliar o meu comportamento cotidiano, de trabalhador, respeitador, doador... De repente passei a ser tratado como marginal e que os quartos deviam ser trancados para prevenir outras investidas. Já que não podiam me expulsar da casa que era minha e da minha esposa.
Esse foi o meu erro estratégico, de não ter tido as condições de dimensionar a reatividade emocional de que eu ia abordar. Pensava que o fato de ter demonstrado em tantas ocasiões uma amizade sincera iria me blindar das reações que ela apresentou.
Hoje ao analisar esse erro, eu considero que eu errei na forma, mas não no conteúdo. Eu respeitei a lei de Deus que está na Natureza. E a Natureza diz que ela nos deu instintos para ser usados. No nosso caso humano, devemos ter o cuidado de usar sem prejudicar ninguém, isso eu fiz em todos os momentos, não coloquei meus instintos em direção a quem não podia se defender e dependia muito de mim, até como pai que não tinham mais. Direcionei esses instintos para a pessoa que estava fragilizada por não ter os seus próprios instintos harmonizados e que poderia ser harmonizados com os meus, se houvesse o consenso. Tudo está, então, nos trilhos da vontade de Deus, não houve desvio dos seus caminhos. O que aconteceu foi que o outro lado não teve a mesma empatia que eu possuía e originou a balburdia que contaminou a todos, e todos da mesma forma se mostraram sem empatia com relação a mim. A única que esboçou reação em minha defesa foi minha ex-esposa, pois mesmo sem argumentos ela conseguia ter na intimidade do seu coração a intuição que na essência eu não era mal e que devia me acompanhar para onde eu fosse. Ela sabia que eu era um homem diferente, capaz de deixar a minha família com dificuldades de sobrevivência, para colaborar com a sobrevivência da família dela, pois sabia que eu, como o cabeça da família, podia levá-la para morar com minha família e deixar a dela à deriva. Mesmo assim eu trabalhava num comércio, principalmente nas minhas férias escolares, para garantir a mesa de tantas pessoas que dependiam de uma só, minha ex-esposa. Sabia que eu usava sempre a verdade, que nunca a enganei, nem a sua família, nem a qualquer pessoa que ela conhecesse. Pelo contrário, eu era sempre a vítima a ser enganado!
Assim, após tantos anos dessa ocorrência, vejo ainda os reflexos equivocados e preconceituosos de tantos quantos foram envolvidos. Estou com a consciência tranqüila frente ao Pai que sonda meu coração. Ele ver que eu mantive sempre uma postura de equidade com todos. Equidade com aquela que não me entendeu e que tanto escarcéu fez; com todos os seus parentes que nunca pesaram com o devido valor tudo que eu fiz para eles; que nunca chegaram a refletir que tudo isso foi causado por uma tentativa de conversa em momento e lugar inapropriado, mas que se essa conversa tivesse sido realizada, nenhum dano maior iria ocorrer.
Dentre todas essas pessoas, o grande conforto que tenho é que a minha ex-esposa, apesar de não ter a clareza dos argumentos que eu tenho, possui na intimidade do seu coração a certeza da minha inocência e da capacidade de fazer o bem, mesmo que venha revestido de aparente maldade. Ela me ver ao contrário do dito popular: ela me ver como “um cordeiro em pele de lobo”. E talvez eu passe isso para o mundo quando quero fazer a vontade de Deus custe o que custar, passando por cima de preconceitos, maledicências e intolerância.