Eu trabalho com dependência química, uma doença que é classificada como a patologia da vontade. Isso porque, a pessoa tem a vontade de não mais usar a substância química, toma essa decisão com sinceridade, mas quando surge o desejo forte, a chamada compulsão, ele não resiste e vai à busca. Não tenho no arsenal médico nenhum remédio que evite o surgimento desse desejo. O que eu tenho são remédios que aliviam a consequência do uso da droga, como antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos, e até antipsicóticos e anticonvulsivantes. Mas não tem jeito, quando surge o desejo forte, a pessoa mesmo usando toda parafernália farmacológica, usa sobre ela sua droga de eleição, com a qual está dependente, tornou-se viciado, adicto, que significa escravo.
Esse é um quadro triste, pois a pessoa não é um doente mental a ponto de não perceber a realidade à sua volta, ela ainda tem um juízo crítico suficiente para perceber a condição de impotência em que se encontra. Por si só ela não tem condições de sair das garras do vício. A medicina ajuda, mas também é impotente para resolver a situação, para curar o paciente. Quem apresenta um resultado ainda melhor que a medicina são os grupos de mútua ajuda. São formados por pessoas vítimas do mesmo problema e que reconhecem sua condição de dependentes e de necessitados de ajuda. Essa ajuda é dada por profissionais, patrões, colegas, parentes, e principalmente pelos companheiros do grupo de mútua ajuda que sentem na pele o que o dependente está sentindo, que reconhece as defesas que ele usa, e que está disposto a ajudá-lo a qualquer momento. Mas acima de tudo, o que parece realmente fazer a diferença entre o sucesso desses grupos e o fracasso dos grupos técnicos, é a aceitação de um poder superior que ajuda o dependente quando ele tem a humildade de reconhecer que é incapaz de resolver o seu problema.
Mas sempre me preocupei como fazer o cérebro reconhecer a nível de consciência, que está comprometido por uma área específica de sua neurofisiologia, capaz de disparar neurotransmissores que levam a uma intensa sensação de prazer. Pois é essa memória do prazer que se obteve com aquele ato onde está a base neurofisiológica da dependência. Nenhum medicamento pode chegar até essa área e exercer o efeito específico de anular o que ela tem na memória que sentiu e a possibilidade de voltar a sentir o mesmo prazer se fizer uso daquela substância que está ali a sua disposição, mesmo que tenha de fazer alguns sacrifícios. Mesmo que esses sacrifícios tenham consequências muito graves, como deixar de estudar, respeitar, trabalhar ou cometer crimes.
Nas técnicas de psicoterapia se tenta trabalhar essa dinâmica racional e comportamental no contexto ambiental e projetos de vida do interessado, para se fazer uma reestruturação do cognitivo. Parece que essa técnica é a mais adequada para o tratamento do problema, pois a pessoa de posse do seu livre arbítrio iria diagnosticar com essa ajuda profissional os seus desvios comportamentais da meta de vida desejada e corrigir o necessário. Mas isso não acontece. Mesmo a pessoa compreendendo todo esse trabalho de psicoterapia, tendo os seus pensamentos reestruturados, continua sendo vítima do desejo compulsivo pelo uso da droga. Que fazer?
Nós, técnicos, nos sentimos impotentes e frustrados frente a cada nova recaída. Mas acredito que neste trabalho de reestruturação cognitiva, deva existir um confronto mais aprofundado e direto com a origem do problema. O problema é usar a droga e ter o prazer. Vamos imaginar, ter uma pedra de crack e sentir o orgasmo cerebral que ela provoca. Para quem não tem a memória, como eu, do prazer que essa pedra de crack pode me oferecer, eu posso deixar de usar sabendo do problema que ela irá causar. Esse é o trabalho preventivo. Mas com o indivíduo que tem na sua memória o prazer que essa pedrinha pode causar, ele geralmente não resiste ao desejo.
É importante se encontrar uma condição, após um preparo psicológico antecipado, para ele ficar sozinho com essa pedra de crack e ver se consegue vencer o desejo com todo o poder racional que ele foi instruído. É este confronto direto da pessoa com seu desejo e sua vontade, sozinho na presença da pedra, que pode exercitar sua vontade cada vez mais para vencer o desejo de forma definitiva.
Não sei bem se isso daria resultado a longo prazo, mas acredito que seria uma opção terapêutica a ser testada.