Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
21/01/2015 00h59
TRAIÇÃO

            A leitura do livro “Judas” de Amós Oz, trouxe-me novas luzes conscienciais sobre o conceito de traição, que eu já intuía, mas que não estava no domínio da minha consciência. Tenta justificar as ações de Judas e tirar dele e do povo judeu o estigma da traição. Tenho que continuar colocando as ideias que encontrei em Amós...

            Ele vai muito além, chega a dizer Judas Iscariotes foi o fundador da religião cristã. Ele era um homem abastado da Judeia, ao contrário dos demais apóstolos, que eram simples pescadores e agricultores de aldeias longínquas da Galiléia. Os sacerdotes de Jerusalém tinham ouvido boatos estranhos sobre um excêntrico milagreiro da Galiléia que fazia coisas prodigiosas e atraia adeptos aqui e ali, em aldeias e vilas esquecidas, até as margens do mar da Galiléia, por meio de todo tipo de milagres provincianos, ele assim como dezenas de pseudoprofetas e milagreiros, a maioria dos quais eram charlatões, ou loucos, ou charlatões e também loucos. Só que esse Galileu atraia um pouco mais de que os outros embusteiros e sua fama crescia cada vez mais. Por isso os sacerdotes de Jerusalém resolveram escolher Judas Iscariotes, um homem abastado, culto, inteligente, profundo conhecedor da Torá escrita e da Torá oral, e próximo dos fariseus e do sacerdócio, e enviá-lo para se juntar ao grupo de crentes que seguiam o rapaz Galileu de aldeia em aldeia, fazer-se passar por um deles para informar aos sacerdotes de Jerusalém qual era a verdadeira natureza daquele excêntrico e se ele representava de fato algum perigo especial. Afinal de contas esse embusteiro da Galiléia realizava todos esses milagres provincianos em lugares distantes, para uma assistência de aldeões sem instrução que acreditavam facilmente em todo tipo de mágicos, feiticeiros e prestidigitadores. Judas Iscariotes vestiu-se pois de andrajos, foi para a Galiléia, procurou e encontrou Jesus e seu grupo e juntou-se a eles... Rapidamente ele conseguiu fazer amizade com os integrantes da seita, uma seita de rotos e esfarrapados que seguiam seu profeta de aldeia em aldeia. Ele também fez amizade com o próprio Jesus, graças a sua inteligência e sua lucidez, e fingindo ser um crente entusiasta logo passou a ser uma das pessoas mais próximas de Jesus, seu confidente, do círculo íntimo de seus seguidores, o tesoureiro desse grupo de indigentes, os doze apóstolos. O único entre eles que não era Galileu, nem agricultor ou pescador pobre.

            Só que ocorre uma reviravolta surpreendente no desenrolar da trama. O homem que fora enviado pelos sacerdotes de Jerusalém para espionar o embusteiro Galileu e seus seguidores, para desmascará-lo, passou a ser um de seus mais entusiasmados crentes. A personalidade de Jesus, a irradiação do amor caloroso e arrebatador que dele emanava, aquela mescla de simplicidade nos gestos, humildade, humor afetuoso, cálida intimidade com qualquer um, junto com a estatura moral, a visão elevada, a aguda beleza das fábulas de que Jesus se valia, e os encantos do maravilhoso evangelho em sua boca, transformaram o homem lógico, realisa e cético da cidade de Keraiot num seguidor dedicado com todas as forças ao salvador e seu evangelho. Judas Iscariotes passou a ser o discípulo mais fiel e dedicado, até a morte do homem de Nazaré. Se isso aconteceu da noite para o dia ou foi consequência de um longo processo de renascimento, não saberemos. Judas Iscariotes passou a ser Judas cristão. O mais entusiasta dos apóstolos. E além disso: foi o primeiro homem no mundo a acreditar piamente na divindade de Jesus. Acreditava que Jesus era onipotente. Acreditava que logo os olhos de todos os homens iriam se abrir, de mar a mar, para enxergar a luz, e viria a redenção para o mundo. Mas para isso, concluiu Judas, que era um homem do grande mundo e entendia bastante de relações públicas e de como criar uma repercussão impactante, era preciso que Jesus deixasse a Galiléia e subisse à Jerusalém. Tinha de conquistar a rainha em sua casa. Deveria realizar em Jerusalém, diante de todo o povo e aos olhos do mundo inteiro um milagre que como tal não houve igual desde o dia em que Deus criou o Céu e a Terra. Jesus, que caminhara sobre as águas no mar da Galiléia, Jesus que trouxera de volta dos mortos a menina morta e Lázaro, Jesus que transformara água em vinho, que tinha exorcizado demônios e curado enfermos com o toque de sua mão e com o toque das fímbrias de sua roupa, tinha de ser crucificado aos olhos de Jerusalém inteira. E aos olhos de Jerusalém inteira ele se livraria e desceria da cruz, vivo e presente, e se postaria saudável e inteiro, sobre as duas pernas, firme sobre o solo ao pé da cruz. O mundo inteiro, sacerdotes e o povo comum, romanos e edonitas e helenistas, fariseus e saduceus e essênios, samaritanos e ricos e pobres, centenas de milhares de peregrinos que chegarão a Jerusalém vindos de todo o país e dos países vizinhos para a festa de Pessach, todos cairão de joelhos para se empoeirar com o pó dos seus pés. Com isso começará o Reino dos Céus. Em Jerusalém. Diante do povo e do mundo.

            Mas Jesus hesitou muito se deveria aceitar a ideia de Judas e subir para Jerusalém. Bem fundo em seu coração de menino, durante todos aqueles dias, o verme da dúvida roia. Serei eu o homem: serei eu o homem? E se eu for menor do que isso? E se essas vozes estiverem me iludindo, forem vãs? E se meu pai que está no céu estiver me experimentando? Brincando comigo? Me usando para um fim cujo segredo me é oculto? Talvez o que tinha conseguido realizar na Galiléia não conseguisse realizar em Jerusalém sofisticada, laica, assimilada, helenista. A Jerusalém pouco crente que viu de tudo e ouviu de tudo e já não se admira de nada. O próprio Jesus talvez estivesse esperando o tempo todo por algum milagre contundente vindo de cima, por alguma revelação ou iluminação, por alguma resposta divina as suas dúvidas: serei eu realmente o homem?

            Judas não o largou: você é o homem. Você é o salvador. Voce é o filho de Deus. Voce é Deus. Voce foi destinado a salvar todos os homens onde quer que estejam. O Céu o encarregou de ir à Jerusalém e lá realizar seus milagres, voce fará em Jerusalém o maior milagre de todos, vai descer vivo e inteiro da cruz, e Jerusalém inteira cairá aos seus pés. A própria Roma cairá aos seus pés. O dia de sua crucificação será o dia da redenção do mundo. É a última prova a que o submete o seu pai que está no Céu, e voce há de passar por ela porque voce é o nosso salvador. Após essa prova terá início a era da redenção da humanidade. Nesse mesmo dia começará o Reino dos Céus.

            Após muitas hesitações Jesus e seus seguidores subiram para Jerusalém. Mas aqui de novo foi assolado pelas dúvidas. E não apenas dúvidas, mas também um temor mortal, tão simples quanto isso, como o de um ser humano. Um temor mortal e humano, muito humano, se apoderou do seu coração: E seu espírito se alarmou, e foi tomado das dores da morte, e começou a se alarmar e desencorajar e disse a eles: minha alma está agora conturbada.

            Se puderes, rezou Jesus a Deus em Jerusalém durante a última ceia, afasta de mim esse cálice. Mas Judas o animou e fortaleceu seu espírito: quem caminhou sobre as águas e transformou água em vinho e curou leprosos e exorcizou demônios e ressuscitou mortos, será capaz de descer da cruz e com isso fazer com que o mundo inteiro reconheça sua divindade. E como Jesus continuava a temer e a duvidar, Judas Iscariotes assumiu os preparativos da crucificação. Não foi fácil para ele: os romanos não tinham nenhum interesse por Jesus, pois o país estava cheio de profetas, milagreiros e visionários sonâmbulos como ele. Não foi fácil a Judas convencer seus colegas sacerdotes a levar Jesus a julgamento: Jesus não era considerado por eles mais perigoso do que uma dúzia dos seus dublês na Galiléia e em regiões remotas. Judas Iscariotes teve de recorrer a manobras, valer-se de seus bons relacionamentos nos círculos farisaicos e do sacerdócio, incendiar corações, talvez também pagar subornos, para providenciar a crucificação de Jesus entre dois criminosos menores na véspera da festa sagrada. Quanto aos trinta siclos de prata naquela época não era mais do que a quantia apurada pela venda de um escravo de qualidade média. E quem pagaria até mesmo três siclos de prata pela prisão de um homem que todos conheciam? Um homem que não tentou nem por um momento se esconder ou negar sua identidade?

            Judas Iscariotes é, pois, o inventor, o organizador, o diretor e o produtor da cena da crucificação. Nisso tiveram razão os seus detratores e difamadores em todas as gerações, talvez com mais razão do que eles mesmos imaginavam. Mas quando Jesus agonizava na cruz em terrível sofrimento, horas e horas no sol ardente, o sangue escorrendo de todas as suas feridas com moscas esvoaçando sobre elas, e até mesmo quando lhe deram vinagre para beber, a fé de Judas não esmoreceu nem por um instante: eis que já está chegando. Eis que o deus crucificado já vai se levantar, livrar-se dos pregos e descer da cruz, e dirá a todo o povo, prostrado em seu assombro: amem uns aos outros.

            E o próprio Jesus? Mesmo nos momentos em que agonizava na cruz, na nona hora, quando a multidão zombava dele gritando: salve a si mesmo se puder e desça da cruz, ainda o fustigava a dúvida. Serei eu realmente o homem? E mesmo assim, talvez ainda tentasse se agarrar, em seus últimos momentos, à promessa de Judas. Com o que lhe restava de forças puxava as mãos presas com pregos à cruz e puxava os pés também pregados, puxava e se sacudia, puxava e gritava de dor, puxava e clamava a seu pai no céu, puxava e morria tendo nos lábios as palavras do livro dos Salmos: Eli Eli lama shabachttani, que significam, meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Tais palavras só poderiam sair dos lábios de um homem agonizante que acreditava, ou talvez acreditasse, que o Deus realmente o ajudaria a arrancar os pregos, realizar o milagre e descer inteiro da cruz. E com essas palavras agonizou e morreu, dessangrado, como humano, como carne e sangue.

            E Judas, cujos olhos horrorizados viam o sentido e o objetivo de sua vida se esfacelar, Judas, que compreendeu que com suas próprias mãos tinha causado a morte do homem que amava e admirava, foi embora de lá e se enforcou. Assim morreu o primeiro cristão. O último cristão. O único cristão.

            Eis uma bela dissertação de comportamentos que possuem coerência e podem ser verdadeiros, frente uma diversidade de outras dissertações, algumas delas já expostas neste diário. O que quero ressaltar com essa extensa cópia do texto é para dar um sentido à traição, que muitas vezes tem uma conotação diferente daquela que a maioria imagina. Da mesma forma eu posso também ser considerado como um traidor por ter saído de dois casamentos onde minhas esposas esperavam um comportamento que eu não tinha mais condições de exibir, pois eu deveria ser fiel às minhas convicções, se quisesse ser honesto comigo mesmo, se quisesse amar a mim mesmo como pré-requisito para amar a humanidade. Talvez eu seja considerado uma espécie de Judas por algumas pessoas, mas espero que um dia a compreensão do ideal que está por trás daquilo que eu faço venha a me inocentar, como pode ser visto nos sentimentos e pensamentos de Judas quanto a Jesus: o traidor não foi mais do que o seu discípulo mais crente na sua origem divina e que imaginava que ele tinha condições de transformar de imediato a humanidade egoísta em cidadãos do Reino dos Céus.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 21/01/2015 às 00h59