Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
31/01/2015 00h59
ERA DE OURO

            Por mais que tenhamos evoluído em ciência e tecnologia, parece que a miséria humana continua a nos seguir, muito parecida com os tempos antigos. O poeta latino Virgílio, autor da Eneida, foi autor de uma poesia pastoril, a “Quarta Bucólica” há cerca de 40 anos antes da era cristã, e que exprime o clamor dos excluídos da época que ansiavam pelo advento de um novo tempo, uma nova era de justiça e paz. Lembrava muito o estilo de profetas como Isaías. Virgílio prediz o surgimento de um Deus menino cujo nascimento porá fim à raça de ferro e que, no mundo inteiro fará surgir a raça de ouro. Segundo o poeta, este menino receberá a vida divina, ele verá os heróis junto aos deuses, e estes o verão entre eles, e ele governará o universo pacificado pelas virtudes de seu Pai.

            Vejamos só, como este advento da “era de ouro”, no dizer virgiliano, era naquela época o grande desejo das multidões subjugadas, famintas e alienadas de Roma, compostas majoritariamente por proletários urbanos, miseráveis provincianos e escravos barbarizados. Eles ansiavam pelo dia em que se ouviria a voz de seu sofrimento. Clamavam por alguém que os compreendesse e os defendesse, ainda que apenas moralmente de tantas e repetidas injustiças sociais. Interessante que o apelo estava presente tanto no povo dominado, como no dominador; tanto no povo espiritualizado escritores da Bíblia, como no povo pagão crente nos deuses do Olimpo.

            Este desejo cresceu, amadureceu e foi preenchido pela chegada da fé cristã. O cristianismo apregoando a excelsa mensagem do amor divino pela humanidade, sobretudo pelos oprimidos, introduzida no império pagão pelo cajado apostólico e por tantos crentes anônimos, causou uma atração quase irresistível nas populações desfavorecidas. Eram as palavras ditas por Jesus e repetidas em vários ambientes e comunidades que causavam o encantamento: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.”

            Era um quadro de solidariedade, de apoio, de compaixão. Causava júbilo discreto nos oprimidos e desvalidos sociais que agora se enchiam de esperança na vinda da justiça divina, que era ratificada pela dura admoestação profética: “E agora, vós ricos, chorai e pranteai, por causa das desgraças que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão roídas pelas traças. O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como o fogo. Entesourastes para os últimos dias. Eis que o salário que fraudulentamente retivestes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os clamores dos ceifeiros têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos.”     

            Assim, ontem como hoje, a maioria daqueles que compõe as fileiras do cristianismo é formada por indivíduos das classes mais baixas e empobrecidas, como Paulo registrou em 1Coríntios 1: 26-28: “Ora, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir os fortes; e Deus escolheu as coisas ignóbeis do mundo, e as desprezadas, e as que não são, para reduzir a nada as que são; para que nenhum mortal se glorie na presença de Deus.”

            Observamos tudo isso ainda hoje, apesar do cristianismo está disseminado e aceito pela maioria da população. Mas não sejamos iludidos, aceitar uma religião não significa aplicar os seus princípios sem dogmas ou interesses pessoais. No Hospital Universitário em que trabalho a maioria é cristã, disso tenho certeza. Existe até uma capela cristã dentro do Hospital com trabalhos eclesiásticos regulares. Mas ao lado do hospital existe uma comunidade carente, cheia de drogas, violência e prostituição. Todos sabem disso, mas passam ao largo das prostitutas nas esquinas, dos drogados nos becos, das vítimas da violência na cadeia ou no cemitério. A caridade cristã não consegue sair da aparência para a prática. O comunitarismo cristão que estamos desenvolvendo na comunidade da Praia do Meio, que tenta fazer essa prática, consegue sensibilizar em primeiro plano as pessoas humildes. Não observamos a aproximação daqueles sábios, nobres e fortes que Paulo citou.

            O Reino de Deus que Jesus ensinou e que Virgílio citou como a Era de Ouro, continua a ser esperado; os pobres, miseráveis, desprezados continuam a existir à espera de nossas ações. Pelo menos nós já temos a teoria na mente; falta o Amor no coração e a ação nos braços. Talvez agora não seja mais necessária a vinda de um Deus menino, mas de velhos calejados no sofrimento e arrependidos dos seus pecados, que consigam pegar no arado sem olhar para trás.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 31/01/2015 às 00h59