Recebi um texto que faz a reflexão de “O Fantasma da Ópera” na perspectiva de uma pessoa muito querida, talvez ela me colocando na posição do Fantasma e ela mesma na condição de Christine, a protagonista. Não vou reproduzir na íntegra esse texto que ela me enviou, mas tentarei colocar suas palavras modificadas para o entendimento atual de quem agora está lendo, com o máximo de esforço para não ser infiel aos sentimentos e pensamentos de quem o fez.
Ao ouvir pela primeira vez “O Fantasma da Ópera” apaixonei-me perdidamente. As impactantes notas iniciais e o crescendo em desespero dos acordes finais ressoam no fundo d’alma, tornando-a inesquecível. Assisti ao filme na Net, em muitos momentos a emoção falou mais alto e marejei os olhos. Toda a história ressalta a dualidade presente no ser humano, tais como fortaleza e fragilidade, beleza e feiura, amor e ódio, disfarce e exposição, e outras de caráter antagônicas. Assim também explora a redenção da fera quando obedece ao preceito de abrir, por amor, a mão fechada seguindo um viés da linha de pensamento de Nietzsche quando diz “pois isso é o mais difícil de tudo: fechar, por amor, a mão aberta”.
O querer bem dá a tônica igualitária do abrir ou fechar, aproximando esses pensamentos aparentemente contrários.
A história gótica tocou-me em pontos sensíveis. Pensei em quantos de nós, em algum momento de nossas vidas, não sentimos que em nós mora um outro a quem percebemos como um ponto de extensão pela semelhança no pensar, falar e agir, que sentimos como pessoas afins.
Há passagens fortes na história. Uma delas nos mostra como a dominação/dependência emocional pode ser bem mais forte que a física, quando ela canta:
...e apesar de se afastar de mim para olhar para trás
o fantasma da ópera está lá, dentro da sua mente.
Será totalmente estranho isso? Não nos pegamos vezes sem conta com lembranças recorrentes de alguém em momentos até mesmo inusitados a tonalizar nossos sentimentos e comportamentos? É salutar que identifiquemos noutrem características que admiramos, que sabemos não possuir, ou possuímos, mas que é alavancada por influência alheia e que acabam servindo de cimento nas relações.
Quanto mais essa influência provoca bem estar, mais aceitamos e até mesmo desejamos que continue. Porém, se chega a um ponto de conflito, procuramos incessantemente nos afastarmos da fonte que nos angustia. O fantasma está lá, mas queremos exorcizá-lo.
O momento crucial da percepção de que devemos nos livrar de algo que nos pesa no âmago, que nos prende qual âncora ao fundo do nosso mar interior e que nos impede de seguir em frente, se dá quando a protagonista resolve aconselhar-se com o espírito do pai e vai até a sua cripta no cemitério, confessando a falta que ele lhe faz e do quanto gostaria de sua presença novamente, mesmo sabendo que precisa dizer adeus: ela deve seguir sozinha, sem tutores, sem anjo da música a orientá-la, já que continuar a segui-lo, aceitá-lo como parte integrante do seu ser, seria renunciar ao amor do namorado de infância, com quem pretendia dividir a vida, para desespero e ódio do Fantasma que a sentia como uma extensão de si, mostrando-se ao mundo através dela, exigindo-lhe dedicação integral à música e desenvolvendo o sentimento de posse, o que a fez sentir-se desconfortável, acima mesmo da gratidão por ele guiá-la e protegê-la. De modo pungente ela se posiciona para o pai mostrando que chegou seu limite, mas reconhecendo que precisa de ajuda para poder partir:
...por que o passado não pode simplesmente morrer?
queria que voce estivesse aqui de novo
sabendo que temos de dizer adeus.
...........
basta de lembranças
basta de lágrimas silenciosas
de ficar olhando para os anos perdidos
me ajude a dizer adeus.
O grande desafio nas relações é equilibrar as porções Fantasma (influenciador) e Christine (influenciada) que temos em maior ou menor grau. Como ela, sabemos que tomar as rédeas da própria vida é necessário, é libertador, mas não deixa de nos provocar anseios. Estaremos expostos a vendavais, muitas vezes inseguros com as escolhas que fazemos sozinhos, desconfortáveis diante do estou aqui que não ouvimos mais. Mas seguimos, é a lei natural, e todo ser tutelado anseia por liberdade e se revolta diante da tentativa de dominação, aprisionamento, sujeição, substituindo os bons sentimentos por maus, o desejo de ficar perto pela urgência em afastar-se, especialmente quando nos frustramos com nossos ídolos de barro em quem confiamos sem reservas:
adeus, meu ídolo caído e falso amigo
anjo da música, voce me enganou
entreguei-lhe a minha mente sem questionar
........
As lágrimas que posso ter derramado pelo seu trágico destino
Tornam-se frias
E transformam-se em lágrimas de ódio
Em pessoas não eminentemente carnais e que priorizam o afeto em desfavor da aparência, são as deformações morais que provocam repulsa e causam piedade as de cunho físico. Quando rejeitados tendemos a pensar que fomos deixados à beira do caminho por nossas feiuras corpóreas, mas quase sempre o comportamento é o responsável por tal, confirmado aqui quando o Fantasma brada:
(...) este rosto, esta infecção que envenena nosso amor.
... referindo-se a ela preteri-lo em função do seu rosto desfigurado de nascença, ao que ela responde:
este rosto assombroso não me causa mais horror
é na sua alma que está a verdadeira distorção
E como ela entende o peso de uma vida de rejeição, e por saber que uma migalha de afeto redimiria aquele homem que fez dela sua vida (como tantos que não tem vida própria e vivem a de outros, sufocando-os) e livraria seu amado da morte, ela aproxima-se e o toca na face deformada, com piedade cristã:
pobre criatura da escuridão
que tipo de vida voce conhece?
Deus me deu coragem de lhe mostrar
que não está sozinho.
E o beija. Diante do olhar surpreso dele ela o beija novamente e um incipiente sorriso de felicidade se transforma em amargura e arrependimento por forçá-la a fazer quase uma “escolha de Sofia”, já que ficando com ele seu amado viveria, mas ela morreria em vida ao seu lado na eterna noite do subterrâneo do Ópera de Paris. Percebe claramente que no gesto dela há piedade por ele e sacrifício pelo outro e é aí que vem a redenção pelo amor: ele a tinha na mão, mas por amor a abriu... e os deixou ir para a vida.
Se há tempos não sentia tanta emoção ao assistir um filme é que também tenho um Fantasma da Ópera dentro da minha mente que fala e não se mostra e mesmo quando silencia continua a falar.
A mim só faltou ao lado uma mão para apertar...
Eis o Fantasma da Ópera cuja alma a minha querida revestiu a minha. Por curiosidade fui procurar no Youtube se existia o filme, ainda não o conhecia, apesar de conhecer tantos filmes. Por ironia encontrei a versão de 1925, a década de lançamento do filme trocada pela década do meu nascimento, 1952. Será que ela estava com a razão? Seria a alma daquele homem semelhante à minha e o que ele fez com Christine eu estaria fazendo a ela?
Sim, reconheci de alguma forma que trago alguma semelhança com esse Fantasma, mas na essência do pensamento, sentimento e ação existem muitas diferenças que o olhar dela não captou e, talvez, como o Fantasma da Ópera, ninguém consiga captar a essência desses meus sentimentos.
Deixarei o meu “Fantasma” falar amanhã, hoje já é muito tarde...