Não é algo tão trágico assim, não chega a ser mesmo um adeus definitivo. Nem se trata de um ser humano, é simplesmente um objeto, metálico, móvel, um automóvel, um QQ 1.1, carro popular de fabricação chinesa. Um carro importado para o Brasil. Mas parece uma criança, de rosto sorridente. Comprei para me servir no dia a dia, por ser um carro econômico e pequeno, que posso estacionar em qualquer espaço desse transito super congestionado.
Interessante como os sentimentos afetivos podem se derramar por tudo ao meu redor, não somente com pessoas, com humanos. Descobri que sentimentos também podem ser direcionados para objetos inanimados, ou melhor, animados com a nossa participação. Assim percebi com a despedida do meu QQ. Descobri aspectos agora no momento final, coisas que antes não haviam surgido na minha consciência.
Descobri que o QQ estava sempre me ensinando humildade. Ele não se incomodava de me levar de segunda a sexta de um lugar para outro da cidade, muitas vezes sujinho por dentro e por fora devido a minha falta de tempo crônica. Ele não ligava, simplesmente jogava água no para-brisa e lá íamos nós para os diversos compromissos do trabalho.
Não ligava quando eu pegava o outro carro no fim de semana e ia para passeios mais alegres para me divertir com os parentes e amigos. Ele ficava guardado no estacionamento do apartamento e nem sequer tinha uma cobertura para protegê-lo da constante maresia. Nunca protestou quando na segunda feira eu colocava a chave na ignição e dava o comando para sairmos para mais um dia de labuta, mais uma semana de trabalho.
Chegou a me ensinar lições espirituais do mais alto gabarito. Lembro que no ano que o adquiri eu entrei numa espécie de teste dos meus valores morais e espirituais. Eu tinha certa pretensão de que estava muito acima de meus irmãos que jornadeiam comigo nesta vida. Pois bem, no primeiro sinal de trânsito que parei ao sair do trabalho, logo senti que algo bateu na traseira do meu QQ novinho. Era uma carroça conduzida por dois meninos que não conseguiram controlar o burro e ele fez com que amassasse a carroceria do QQ. Desci do carro bravo, vestido ainda com o jaleco branco que uso no trabalho e disposto a ter alguma compensação pelo ocorrido, ou mesmo uma vingança pela irresponsabilidade do desastre. Como vi que as crianças nem seus pais poderiam pagar pelo estrago feito, nem mesmo que eu chamasse os guardas para registrarem a ocorrência, pensei em cotar as cordas que prendiam o burro à carroça e o deixar correr pela pista deixando os meninos atarantados. Finalmente minha consciência conseguiu o controle das emoções e voltei ao QQ só com os protestos de tal coisa poder acontecer numa via asfaltada tão usada pelos motoristas. Hoje eu sei que aquele amassado que ainda hoje existe no QQ é um sinal que mostra o quanto ainda estou longe de ser a pessoa tolerante, compreensiva que eu imaginava ser.
Também ele me ensinou uma das grande lições do Cristo, de ser simples como as pombas e prudentes como as serpentes. Na última revisão que fiz no QQ, aceitei com educação todos os itens de despesa que me foram ditos sem que a moça responsável me tivesse mostrado o que estava sendo cobrado. Depois que foi dado o valor e que o cartão foi passado, pequei os documentos fui verificar o que eu havia acabado de pagar. Descobri que o item mão de obra havia sido cobrado duas vezes. Chamei a atenção da secretária e ela teve que refazer o pagamento. O Baby dessa vez ficou orgulhoso comigo.
Lembro-me de uma noite ao voltar para casa e passar por uma lombada, o QQ tropeçou e quase que eu perdia sua direção. Mas ele evitou bater em outro carro ou no meio fio e mesmo machucado me levou em passo lento até o meu apartamento.
Por tudo isso o QQ se tornou meu amigão, me devotava um amor incondicional, parecido com aquele que o Mestre ensinou e que eu procuro aplicar. Portanto, é justificável que na hora da partida o meu coração tenha marejado.