Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
24/03/2015 23h59
FELIZES OS TRISTES

            Parece um grande paradoxo associar felicidade com tristeza, mas foi isso que Jesus ensinou na terceira bem-aventurança: “Bem-aventurados os tristes, porque serão consolados.”

            Ao fazer isso, proclamar felizes os tristes, Jesus provocou uma perplexidade e um certo mal-estar jamais vistos no mundo, e tudo isso ainda permanece.

            Um homem comum, intelectivo e profano, não pode mesmo assimilar este conceito tão elevado ou transcendente que parece inteiramente contraditório, fruto de uma rematada estultice. Todavia, ainda que pareça lógico tal raciocínio dos intelectuais, quem pensa dessa forma trabalha sobre o erro, confunde as coisas, cultiva e colhe por isso mesmo, um rosário de enganos sem fim e de misérias sem conta. É que dessa acanhada e medíocre posição em que se encontra, o homem profano, meramente sensitivo e intelectivo, quando busca desordenadamente a felicidade, que é o objetivo máximo de toda criatura dotada de livre arbítrio, ele a identifica desnaturadamente com o prazer! Aqui é que está o grande problema, o incrível descompasso. Pode perfeitamente um homem triste ser feliz ou bem-aventurado. Em verdade, é o único que pode. Pelo menos, é o que se verifica, quanto ao início do autoconhecimento e da auto-realização do ser humano, pressupostos indispensáveis para se conseguir a felicidade.

            Há profundas diferenças entre prazer e felicidade que a inteligência desconhece, mas que a razão pode conhecer perfeitamente. A razão nos mostra que todo prazer, sem nenhuma exceção, é uma coisa quantitativa do ego e sempre nos vem de fora para dentro, enquanto a felicidade é apanágio qualitativo do Eu e somente pode vir de dentro para fora. Por isso Paulo de Tarso podia dizer sem mentir: “Transbordo de júbilo em meio as minhas tribulações.” (II Cor 7,4). Por outro lado, é possível que alguém carregue uma infelicidade total, ainda que navegando no oceano de todos os prazeres.

            Não há qualquer tipo de prazer, físico, emocional ou mental, que não se transforme automaticamente em dor, além de certa duração ou de certa intensidade. É que dor e prazer é essencialmente a mesma coisa: apenas sofrimento! Sim, o prazer também é sofrimento. A única diferença é que, enquanto o homem sofre o prazer agradavelmente, a dor ele a sofre desagradavelmente. Por isso que o prazer e a dor nada têm a ver com felicidade. Um verdadeiro santo não busca o prazer nem foge da dor.

            As pessoas derramam rios de lágrimas porque um filho não nasceu ou porque não conseguiram ficar ricas. Quem, entretanto verte uma lágrima por não ter visto Deus? E aquelas que quase enlouquecem com a morte de seu cachorro ou gato de estimação e não demonstram a mínima sensibilidade para as coisas do espírito?

Os que vivem a murmurar, que clamam ao alto por seus males, que se revoltam, que não se conformam, estão marcando passo. Suas dores não edificam nem depuram. Suas lágrimas são ácidas e amargas, gerando males não programados, amarguras desnecessárias, infelicidade voluntária.

            Dessa forma podemos compreender que a tristeza que nos fala Jesus, não é uma tristeza comum e qualquer. É uma tristeza dentro da mais profunda e mais perfeita alegria. É uma tristeza especial e qualificada, a tristeza da disciplina, que o Eu Crístico impõe ao ego humano, tornando-o dócil e manejável às mais elevadas exigências do Espírito. É o “caminho estreito” do dever cumprido, é a “porta apertada” da renúncia consciente. É o egocídio voluntário que, no começo, pode trazer uma inquietante e profunda tristeza. Mas, como o ego não morre e não pode morrer, pois só morre o egoísmo, acontece o contrário, o ego se integra no Eu, e assim vive muito mais abundantemente. A tristeza inicial converte-se, de uma forma automática, numa bem-aventurança, que é a mais pura felicidade, a mais bela e sorridente alegria. Aquilo que no início tinha sabor de fel, agora tem o sabor do mel.

            Pude comprovar essa argumentação agora neste meu período no deserto. O jejum e a restrição alimentar provocava em mim uma tristeza profunda por desejar me alimentar, tendo os recursos para isso, mas a minha vontade operada pelo espírito mantinha tudo dentro da meta estabelecida de perder diariamente peso. Assim, eu sentia que essa tristeza logo se convertia em felicidade por saber que meu espírito estava domesticando o meu ego. É esta tristeza a qual Jesus se refere, uma tristeza provocada no corpo pela frustração do ego. Isso é apenas a sinalização da subordinação dos desejos da carne às mais elevadas exigências do Espírito.

            Uma migalha desse sabor, uma pitada dessa alegria, um pouquinho dessa felicidade, vale mais que todos os prazeres do Universo.

            Há ainda outro sentido especial para a bendita tristeza que nos redime, para a tristeza que nos liberta, para a tristeza que nos consola... Essa saudável tristeza é a nostalgia da alma, a angústia metafísica das origens, a eterna saudade do Paraíso perdido. É o mais belo conforto que nos advém do próprio Infinito.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 24/03/2015 às 23h59