Lembrei daquela música de Martinho da Vila e que cantei quando passei no meu vestibular de medicina: “Felicidade, passei no vestibular / Mas a Faculdade, é particular...”. Também me sinto feliz agora, pois acredito que passei no teste de vestibular proposto por Deus para eu ser cidadão do Seu Reino.
Recebi no meu consultório os pais daquele jovem assassinado na Praia do Meio há 31 dias. Eles vieram acompanhados de uma jovem, obesa, que dizia ser filha “adotiva” do casal, pois mora perto deles há muito tempo e que sempre foi tratada como filha. Dizia que também fazia tratamento psiquiátrico e pedia para que eu receitasse sua medicação. Mostrou-me as cópias dos receituários e dos atestados que guardava em uma bolsa. Lembrei-me das minhas palavras na igreja, na noite de ontem, de que a família que perdeu seu parente por força do mal, pela força do bem ela iria adquirir um novo parente para suprir todas as necessidades. Percebi que a força do bem estava me convocando para eu ser esse parente espiritual, ser filho daquele casal e irmão dessa jovem. E foi assim que eu procurei me comportar, além da minha atuação como médico. Como médico eu perguntei todos os detalhes de emoções, pensamentos e ações que todos estavam fazendo para ter o devido diagnóstico e fazer a devida prescrição e encaminhamentos necessários. Como parente espiritual eu procurei saber a forma de convivência, os recursos que existiam que pudessem minorar o sofrimento daquelas pessoas que ainda se sentiam intimidadas pela força do mal.
Depois de avaliar todos os recursos que eles tinham ao seu alcance, ofereci o flat da Redinha Nova para eles ficarem algum tempo enquanto se recuperam de tão grave choque. Expliquei que eu possuía esse flat e que o usava em alguns finais de semana, que não custava nenhum exagero para mim se eles fossem para lá, inclusive com o outro filho que ainda mora com eles. Seria um espaço que poderia também acolher a viúva do seu filho assassinado com a sua neta. Eles ficaram calados e eu disse que podiam pensar sobre a oferta, inclusive com a opinião do filho que não estava presente. Mas pude observar que eles ficaram interessados na ideia.
Quanto a minha irmã espiritual, observei que era uma pessoa de extrema fragilidade emocional, que também fora vítima da violência, tivera um primo assassinado no mesmo bairro. Era formada em administração, mas trabalhava atualmente em subemprego, no armarinho de uma amiga, sem carteira assinada. Além dos medicamentos que fazia uso criava diversos animais, 28 gatos e 3 cães. Tudo isso, explicava ela, para procurar preencher o espaço que ficou na sua vida. Desde criança convive com a violência, seu pai espancava sua mãe de forma grotesca, arrastando-a pelos cabelos e esmurrando-a no rosto, na sua frente de criança; teve um namorado e por ciúme também fora espancada por ele, teve um revolver na sua cabeça e só não morreu porque ao disparar a arma bateu “catolé”. Agora não tinha mais coragem de se aproximar de um homem por tanto trauma de violência, mesmo sabendo que é uma coisa boa o relacionamento harmônico com um homem. Fiz as receitas e o atestado que ela precisava e orientei para procurar a Associação e se envolver com nossos trabalhos, pois existe a possibilidade dela assumir algum trabalho remunerado dentro da área de Turismo que queremos implementar.
Finalmente terminamos o nosso encontro e senti que eu havia me comportado à contento, como o Pai deseja que seus filhos se comportem no Seu Reino, como uma família universal.
Para a minha irmã dei as amostras grátis de remédios que ela podia usar, os receituários e o atestado. Incentivei para participar da Associação e tenho impressão que ela irá ser aproveitada em alguma atividade remunerada.
Para o meu pai dei palavras de incentivo, também amostras grátis de remédios que ele podia usar, o atestado com três meses de incapacidade para o trabalho, para ele ficar pelo benefício do INSS. Ele sabe onde fica o flat, já trabalhou por aquela região e percebi que ele estava com um novo alento.
Para minha mãe, que percebi ser a pessoa da família que tem uma visão mais ampla de tudo que está acontecendo, que foi quem pegou o microfone na igreja e falou da sua dor e do seu perdão, reforcei o espaço do flat como muito útil nesse momento para toda a família e que na segunda feira, depois dela ter conversado com o filho, eu poderia levá-los até lá e instalá-los convenientemente.
Ao sair do consultório percebi que o dia estava da forma que eu mais gosto, nublado com possibilidade de chuva e entendi que foi a resposta do Pai, mandando o céu informar que eu fui aceito como mais um cidadão do Seu Reino.