Este termo parece meio estranho, como ser amigo de um “Ser” imensamente diferente de mim? Que não foi criado e que não existe controle do tempo sobre Ele, está em todos e em tudo, e a máxima compreensão que posso ter de Sua existência é uma energia criadora que faz surgir e funcionar com harmonia todos os Universos possíveis? E o máximo que posso sentir dessa energia criadora é no sentimento de Amor, que ainda por cima corre o risco de ser contaminado por meus desejos instintivos da sobrevivência do meu corpo material. Portanto, a sensação não seria bem uma “amizade” entre mim e Deus, mas sim um sentimento de obediência, agradecimento, e vontade de compensar um pouco do tanto que recebi, procurando fazer ao máximo a vontade dEle.
Estou fazendo essa reflexão porque comecei a ler o livro de Taylor Caldwell, “O grande amigo de Deus” que é sobre a vida do apóstolo Paulo. Ele sempre foi uma pessoa estudiosa, que respeitava com máxima disciplina o Deus que lhe ensinavam. Certamente foi essa dedicação à vontade de Deus que inspirou os tradutores da obra da autora a colocar esse título de Paulo como “Amigo de Deus”, uma vez que o original é diferente: “Great Lion of God”, que significa: “O grande Leão de Deus”. Talvez fosse mais pertinente colocar o epíteto de Leão do que de Amigo, pois não implicaria numa intimidade com Deus difícil de entender. Leão dá um sentido melhor de subordinação e de determinação de fazer à vontade de Deus, melhor do que um entendimento mais nivelado como Amigo deixa transparecer.
Mas, aonde quero chegar com essas reflexões é que, da mesma forma que Paulo estava convicto de fazer a vontade de Deus, eu também adquiri essa convicção. Talvez nem tanto com o aspecto feroz e determinado de Paulo, o que justificaria o epíteto de Leão pela autora, mas muito mais com um aspecto tímido, medroso, que justificaria mais o epíteto de ovelha que a autora poderia colocar em mim. Mas vamos chegar ao centro de minhas reflexões. Eu posso me considerar, mesmo na aparência de uma ovelha, como mais um amigo de Deus, talvez, ou com certeza, não tão grande como Paulo. Então, assim considerando, o meu comportamento não deveria ser bem parecido com o de Paulo em todos os aspectos? Pois o meu comportamento é diametralmente oposto ao de Paulo quando se trata de relacionamentos de gêneros, quando envolve a possibilidade de uma intimidade que possa chegar ao ato sexual.
Pois vejamos um trecho do livro de Taylor Caldwell, quando ela relata um encontro de Saulo, adolescente, com Dacyl, uma pretensa namorada. Ele acabara de salvar a vida dela, dentro de uma lagoa, da mordida de um chacal infectado pela raiva:
“O rapaz sentiu o animal moribundo relaxar e ficar flácido, porém tornou novamente a enfiar-lhe a pedra no olho esquerdo, usando suas últimas forças. O chacal submergiu lentamente, em ondas vermelhas, e morreu, as pernas e o corpo flácidos à deriva.
Saulo tornou a estremecer vendo aquilo. Jamais matara qualquer ser. No silêncio, podia ouvir sua respiração, ofegante e rouca. Afastou-se do local onde o animal morreu e começou a lavar braços e mãos com água limpa, por medo das gotas de sangue neles, da saliva letal e de qualquer salpico de espuma que pudessem tê-los atingido.
Então, pensou em Dacyl. Virou-se e começou a nadar para a margem. A escrava tinha caído na terra quente, num amontoado de roupas molhadas, o rosto imóvel e silencioso ao vê-lo aproximar-se. A moça não conseguia se mover. Mesmo quando ele chegou ao seu lado, só pôde olhá-lo, numa palidez mortal, os olhos escuros escancarados.
- O animal está morto – disse Saul. – A lagoa está envenenada. Pobre Dacyl. Tudo acabou. Agora não precisa mais ter medo.
Dacyl estendeu a mão, em silêncio, em busca da dele. O rapaz pegou-a e procurou aquecê-la entre as suas, molhadas e frias. Ela estava tentando falar. Saul curvou-se carinhosamente para ouvi-la.
- Hércules – disse a moça, com um sorriso fraco. – Perseu. Odisseu.
Saul colocou o corpo trêmulo da moça em pé e tentou rir.
- Não foi nada – falou. – Não podia abandoná-la. – Cercou-a com seus braços de soldado, apertando-a contra ele num repentino frenesi de alegria e amor. – Então não a amo, minha querida?
A água escorria deles, mas seu alívio e amor os aqueciam e o sol começou a dardejar, quente, sobre seus corpos. Dacyl pegou uma das mãos de Saul e, humildemente, beijou-a. Seu cabelo escuro, molhado, macio como seda, caiu sobre o braço nu do rapaz. Saul tornou a estremecer ao toque dos lábios dela e o desejo o aguilhoou como uma faca. Quando a moça ergueu a cabeça, viu-lhe os lábios, não gentil e agradavelmente como durante os meses anteriores, mas com entusiasmo, lascívia e paixão. Eram suaves contra os seus, úmidos e frescos. Abriram-se, rendendo-se; ela passou os braços em torno do pescoço de Saul, apertou o seu corpo contra o dele, murmurando ele não sabia o quê. Sentiu os seios jovens contra o peito, prementes, tensos e duros. Instintivamente, Saul ergueu a mão até um dos seios, pegando-o em sua palma agora quente e exploradora. A moça tornou a gemer, languidamente, agarrando-se a ele.
Saul jamais havia tocado num seio e sentir aquele em sua mão quase o enlouqueceu. Sempre agarrados, deixaram-se cair na margem quente, em meio ao capim alto e empoeirado. O mundo tornou-se um profundo troar de paixão, de som incoerente, quente, um delicioso combate. Acima deles, a catarata cantava, o sol brilhava, poeira dourada flutuava no ar e havia um bramido agradável nos seus ouvidos.
Saul ficou completamente perdido. Havia obedecido aos instintos do corpo e fora envolvido numa sensação inexplicável e dominadora, angustiosamente agradável, mas terrível em sua premente intensidade. Deitou-se sobre Dacyl, possuindo-a brutalmente. A moça apertou-o, mordeu suavemente seu pescoço e gemeu de gozo e prazer. Seus corpos tinham o calor da chama e, como esta, fundiram-se, só havendo em torno deles o perfume do capim e das flores balançando e o canto da água. Enlaçados, só tinham consciência do seu êxtase. Saul sentiu o corpo de Dacyl mexer-se sob o dele e a cada movimento intensificou mais suas sensações, sem que soubesse se eram de dor ou de êxtase. Sentiu a língua da moça passar ternamente em sua orelha, ouviu-lhe a respiração gemente e sentiu seus movimentos rápidos. Quando o momento culminante chegou, Saul pensou que havia morrido numa explosão de arrebatamento e era uma morte a não se lamentar, pois era maior que a vida, como a explosão de um sol ou uma chuva de estrelas.
Os olhos de Saul estavam fechados. Suando e ofegante, ficou em cima da moça e foi apenas momentos depois que rolou para o lado, completamente dominado pelo que havia experimentado. Não pensou em nada imediatamente. Tinha lembrança apenas de um imenso e incrível arrebatamento e alegria, aos quais nada havia comparável.
Dacyl apoiou o corpo num cotovelo e olhou-o, sorrindo, os lábios rubros e inchados, os cabelos quentes e quase secos sobre os ombros e seios nus. Ele sentiu seu movimento e vagarosamente abriu os olhos, vendo o rosto da moça inclinado sobre o seu, mais bonito do que nunca. Ergueu a mão devagar e encostou-a no rosto da jovem, que virou a face e beijou-lhe a palma. Saul ouviu um riso grave de contentamento e afeto saindo da garganta de Dacyl. Uma perna branca, nua, repousava sobre a dele.
Então, como um punho frio atingindo seu coração, o rapaz pensou. ‘Arruinei, deflorei, violentei e destruí esta criança inocente e por isso estou almadiçoado.’
- Amado, que está acontecendo? – Perguntou Dacyl, assustada pela palidez e rigidez do rosto sob o seu.
Saul virou o rosto para o lado. Queria chorar de desespero, de arrependimento, de vergonha, por ter possuído aquela moça pura, maculando-a, e por ela ter-se submetido à sua luxúria por gratidão e porque não passava de uma escrava, não podendo, por isso, negar-se a um homem necessitado. Na verdade, ele estava amaldiçoado aos olhos de Deus e dos homens; como poderia reparar sua culpa e seu crime? Quem o perdoaria? Merecia uma morte ignominiosa.
Dacyl começou a acariciar seu vasto cabelo ruivo e sua garganta.
- Você é um verdadeiro herói, meu amado – disse a moça com sua voz infantil. – Sou sua para sempre. Sou sua escrava meu adorado. Nem mesmo Vênus teve um protetor e amante tão possante, mais forte que qualquer outro homem. Como ela deve me invejar, a pérola de Chipre! – disse, beijando seu rosto com ternura.
Acima de sua cabeça, o céu passara a um azul flamejante e a catarata dourada esguichava música líquida, voltando a lagoa a ter a cor de limões novos. A relva e o musgo eram macios sob eles, tornando-os lânguidos. Mas Saul sofria profundamente em sua alma.
- Perdoe-me – disse -, perdoe-me minha querida, se for possível.
Os brilhantes olhos negros de Dacyl arregalaram-se de espanto. Curvou-se para vê-lo melhor, como que incrédula por ele ter dito aquelas palavras. O azul metálico dos seus olhos estranhos cobriu-se de lágrimas e Dacyl ficou assombrada.
- Perdoá-lo! – exclamou. – Você é que deveria me perdoar por colocá-lo em perigo por causa da minha despreocupação! Perdoá-lo! Eu o adoro, meu herói, meu Apolo, com os cabelos como o sol e músculos como couraça! Se a vida, para mim, se reduzisse a apenas esta manhã, ainda assim seria grata aos deuses, que me permitiram deitar com você, confortá-lo e recompensá-lo.
Saul tentou sorrir em face dessa criancice inocente. Acariciou a suave garganta da moça.
- Mas isso a destruiu, querida. Aproveitei-me da sua perturbação. Deflorei-a. quem poderá restaurar sua pureza?
Dacyl sentou-se abruptamente. Olhou-o, maravilhada. Então, depois de um bom tempo, começou a sorrir e era o divertido sorriso de uma mulher e não o de uma garota.
- É isso que o perturba, meu bobinho? – perguntou, com afeto e carinho. – Vamos! Tenho dezessete anos e não sou virgem. Com certeza não me acredita! – Riu com grande ternura. – Deixei de ser virgem aos doze anos. Nessa idade, fui prometida ao capataz da propriedade do meu senhor para casarmos. Fui-lhe entregue por minha senhora, a nobre Fabíola, ganhando nossa liberdade e um bosque de oliveiras. Mas amarei sempre você, mesmo quando deixar de vê-lo.
Espantado, abalado e taciturno, Saul ouvia aquela voz clara e feliz, finalmente compreendendo. Ele estivera pensando como judeu, mas a moça era pagã, tendo nascido e se criado numa atmosfera estranha ao seu conhecimento e à sua compreensão. Para ela, nenhum pecado havia sido cometido. Tivera prazer como alguém que escolhe que escolhe uma bugiganga, durante uma hora de satisfação, e depois, pronto, tudo esquecido. Ela vivera toda a sua vida numa sociedade hedonista, onde tudo era permitido, a honra desprezada, a profanação motivo de riso, o adultério um instante de simples satisfação, a fornicação aceita e a lascívia uma coisa a ser cultivada e procurada. Pertencia a um mundo detestado e temido pelos judeus religiosos, execrado, evitado por eles. E já não era mais Dacyl, a inocente escrava pela qual chorara em segredo, mas a ‘mulher estranha’, cujos lábios eram o portão do inferno. Ele, Saul bem Hillel, havia caído precipitada e sensualmente no poço do seu corpo e estava perdido.
Fora maculado e corrompido além da redenção. Abandonado além da esperança, exceto se devotasse sua vida inteira à penitência, ao remorso e ao arrependimento. Deus havia desviado Seu rosto dele e como poderia reparar isso numa curta vida? Tinha deitado com uma prostituta.”
Eis a profunda diferença entre mim e Paulo. A sintonia que porventura se forme entre mim e qualquer pessoa, seja rica ou pobre, letrada ou analfabeta, será por mim respeitada e todo o afeto fluirá se assim houver interesse de ambos até a intimidade sexual, sem culpas ou preconceitos. Acredito, diferente de Paulo, que Deus quer que eu assim faça a Sua vontade, ao respeitar a Lei da Natureza que Ele criou, desde que o atendimento dos desejos não prejudique a nenhum dos envolvidos numa decisão consciente de cada um. E dessa forma, por caminhos diferentes, acredito que somos amigos de Deus, nos sentido de fazer à Sua vontade de acordo com a Sua lei que está escrita em nossas consciências.