Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
09/06/2015 00h01
ROMA DE ONTEM, BRASIL DE HOJE

            Continuando a ler o livro de Taylor Caldwell, “O grande amigo de Deus”, a história de São Paulo (Editora Record, São Paulo/Rio de Janeiro, 2005 - 22ª edição, pp 234-238), deparei-me com o seguinte trecho que reproduzo abaixo, o diálogo de dois soldados romanos, pai e filho, falando de Roma da época de Jesus, que lembrou-me de imediato a situação do Brasil de hoje:

            “Milo discutiu reservadamente com o pai as condições da Roma moderna e seu rosto tornou-se progressivamente sombrio à medida que se dirigiam sem parar para a Porta de Joppa.

            - Já falamos nisso, pai – disse Milo -, e não chegamos a uma conclusão, a não ser que Roma, como é agora, não pode continuar, a menos que os bons cidadãos sejam cada vez mais oprimidos e finalmente escravizados a serviço dos inferiores. Sabemos que as crianças recém-nascidas não podem mais ser sustentadas pelos pais, antigamente chamados de ‘homens novos’, a classe média, e estão sendo expostos de maneira a que devam morrer. A cada dia que passa, mais impostos onerosos são descarregados nas costas dos homens laboriosos, respeitosos e produtores, para o realce de uma corte dissipadora, financiamento de fazendeiros, cobiça dos políticos, abrigos gratuitos construídos para a ralé preguiçosa, indolente, estúpida e degenerada, divertimento livre para esse mesmo populacho, construção de enormes edifícios governamentais para abrigar o sempre crescente e cobiçado exército de burocratas e outros funcionários insignificantes, celeiros que fornecem comida gratuita à malta, e os sonhos ambiciosos dos filhos de escravos libertos de transformar as ruas, becos, estradas, casas, vilas e os subúrbios de Roma numa grandiosa ‘cidade de alabastro’! Então, há as guerras para alimentar as oficinas que fabricam armamentos e cobertores para os mercenários, que esgotam a bolsa pública, agora quase vazia. Tibério César começou com um propósito nobre: restaurar o Tesouro, pagar a dívida pública, encorajar a frugalidade e punir o ócio. Mas ele também sucumbiu às pressões estabelecidas por Júlio César, que pagava a ralé para apoiá-lo.

            - Nenhuma nação – disse Aulo, que havia estudado história – toma esse caminho sem sucumbir. Assim, Roma deve sucumbir.

            Seu rosto contorceu-se de dor.

            - Durante nossa vida – falou Milo – devemos viver virtuosamente e com vigor, desprezando os fracos e depravados, detestando os concupiscentes, exaltando nossos deuses, pagando nossas dívidas. – Sorriu. – E nossos impostos... quando seus sanguinários cobradores nos pegam.

            - Se todos os bons cidadãos romanos recusarem-se a pagar os impostos, que pode então um governo tirânico fazer? – perguntou Aulo, com um olhar ansioso ao filho, mistura de humor e malícia.

            Milo riu, contendo seu enorme cavalo negro para evitar atropelar um garoto imprudente. Depois, ficou sério.

            - Pensa que a populaça lúbrica, os ricaços, decadentes, abandonados, preguiçosos, vis, não lutariam por seu sustento, vindo das bolsas dos orgulhosos? Garanto-lhe que César viraria a ralé contra os bons romanos, deixando-a saquear, queimar, destruir e matar à vontade, até Roma ser transformada num rio de sangue e os cidadãos úteis reduzidos à mendicância e escravidão. Lembre-se de que Catilina tentou isso, mas teve que enfrentar Cícero, que se opôs a ele e finalmente derrotou-o. Mas agora não temos um Cícero, nenhuma forte voz patriótica, infelizmente, e restam poucos romanos para lutar pela pátria, pelo respeito aos deuses, pelas cinzas dos pais e pelo orgulho heroico.

            - O desespero – disse Aulo – não é um mal. É uma virtude e pode inspirar homens a restaurar a grandeza de sua nação, sua virtude, esforço e orgulho. Mas os vis eliminaram o desespero dos corações dos homens, deixando apenas vermes e Circes sedutoras, que dizem ser tudo em vão, que é suficiente enfrentar o dia e sobreviver, deixando que o amanhã se arranje. Assim, os homens que devem vigiar as muralhas e guardar as portas, olham as mulheres e filhos, encolhem desencorajados os ombros e não se desesperam. O desespero os abandonou há muito, quando os mentirosos disseram-lhes que era inútil opor-se ao governo tirânico que declarava amar a ralé e instilara nela a inveja, a cobiça, a luxúria, e a informara de que os que trabalhavam pelo pão eram seus ‘inimigos naturais’, que deviam ser arrasados pelos impostos. Se eu ousasse – prosseguiu Aulo -, ergueria um templo para a deusa do Desespero, vestindo-a com uma armadura flamejante, dando-lhe uma reluzente espada vingadora, e implorava-lhe que destruísse as criaturas corrompidas que estão comendo meu país vivo, devorando suas entranhas e bebendo seu sangue dourado!

            - Como diria minha mãe, ‘Amém’ – falou Tito Milo Platônio. – Os judeus não dizem, ‘o que não trabalha não deve comer’? Amém. Amém. Roma já foi aconselhada, mas não é mais. Todavia, como disse Cícero, cada povo tem o governo e o destino que merece. É verdade.

            Tinham chegado a um cruzamento. Milo e o pai sofrearam seus cavalos, fazendo com que sua comitiva também parasse. Uma multidão barulhenta e brutal estava reunida, erguendo porretes e assentando-os furiosamente nas cabeças e corpos de meia dúzia de homens no meio, praguejando e insultando-os. Os homens haviam caído de joelhos, protegendo as cabeças com os braços e implorando misericórdia. À sua volta havia livros, papéis e canetas espalhados; a ralé pisoteava-os, espalhava-os e cuspia neles.

            Milo ergueu a mão encouraçada e um soldado aproximou-se a cavalo.

            - Pergunte, se possível, o que está causando esse distúrbio inconveniente – disse.

            Aulo franziu o cenho.

            - É meu dever, como centurião, manter a ordem.

            - É verdade – retrucou Milo e tornou a esboçar um sorriso. – Mas acho que, neste assunto, o senhor preferirá virar os olhos para o outro lado.

            O soldado voltou, fazendo continência.

            - Senhor – disse -, os homens estão espancando os coletores de impostos e, ao que parece, não querem apenas seu sangue, mas suas vidas.

            Aulo preparou-se para avançar, porém Milo segurou o pescoço do cavalo do pai. Ergueu os olhos serenamente para o imenso céu azul.

            - Este é um dia agradável e estou usufruindo a primeira parte da minha viagem – falou. – Vamos entrar por esta rua, que está muito tranquila.

            Virou o cavalo rapidamente para aquele lado.

            Aulo olhou-o, aturdido, e franziu ainda mais o cenho.

            - Os coletores de impostos são nossos empregados. Estão cumprindo seu dever.

            - E com satisfação – disse Milo. – Oprimem seu próprio povo, porque são uns tipinhos mesquinhos e malvados que sentem prazer à visão da dor e da aflição. Portanto, deixemos que provem o que fazem com os outros. Em proporção menor, é nossa única vingança contra os coletores de impostos de Roma, e desejemos que os romanos tenham o espírito desses pobres e maltratados judeus! Por uma vez, deixemos a deusa Justiça se satisfazer.

            Aulo sorriu interiormente e a comitiva entrou na rua tranquila, afastando-se dos gritos e do tumulto, até não mais ouvirem nada.

            Fui negligente, pensou Aulo. Meu dever era claro. Mas não é uma coisa horrível quando o dever de alguém é a tirania, a proteção de seres abomináveis e o castigo dos que tinham razão no seu desespero e ira? Quando deve a manutenção da lei e da ordem descer à fossa da opressão?

            As suas costas, ouviu as risadas dos soldados de Milo e esperou que estivessem rindo com pensamentos semelhantes aos que estavam atravessando sua mente.

            Vinte e cinco cobradores de impostos judeus haviam sido atacados naquele dia nas ruas de Jerusalém por gente desesperada e dez morreram dos ferimentos. Depois disso, durante um certo tempo, os coletores de impostos, apesar de protegidos pelos romanos, andaram com cuidado, sem roubar, extorquir, torturar, se apropriar de coisas nem convocar os guardas para efetuarem prisões. Sabiam do ódio que sua própria gente lhes dedicava e do desejo de vingança em seu íntimo, fazendo com que nada os provocasse durante algum tempo, agindo circunspectamente. Os romanos nem sempre estavam presentes.

            Isso foi em parte devido a intervenção de Aulo Platônio, que publicou uma ordem determinando que qualquer coletor de impostos apanhado num ato desonesto fosse executado. O coletor devia agir clara e escrupulosamente, sem ameaças e sugestões de castigo, não devia mais extorquir, nem tirar o pão da boca de crianças ou o teto de alguém. Caso contrário, morreria publicamente, como exemplo para outros criminosos.

            Uma ‘prisão e detenção’ de caráter geral fora determinada por Aulo contra os desesperados que tinham mutilado e morto os coletores de impostos, mas por qualquer motivo inexplicável nenhum jamais foi preso.

            - Afinal de contas – disse Aulo de modo virtuoso aos seus colegas de farda -, na verdade não é da nossa conta. Empregamos os coletores, isso é verdade. Mas se são criminosos, que o seu próprio povo lhes faça sua rude justiça. Não dissemos a todas as nações que tínhamos trazido a Paz Romana? Acima de tudo, desejamos a paz.

            Com menos ironia, porém com virtude ainda maior, o saduceu Shebua ben Abraão disse:

            - É monstruoso que agentes e funcionários do governo não possam executar suas tarefas e deveres sem serem ameaçados por gente rebelde, que não respeita a lei e a ordem.

            Mas então, Shebua, graças à sua amizade com Herodes e Pôncio Pilatos, pagava poucos impostos e a maior parte dos seus lucros era reservadamente depositada em Roma e Atenas, aos cuidados dos banqueiros mais discretos, que fingiam não conhecer os nomes verdadeiros de seus clientes. Os amigos de César não sofriam privações nem passavam necessidades, orgulhando-se da sua segurança e devoção à lei, ninguém ameaçava seus lares, tomava suas propriedades, inflamava seus corações velhacos com o ódio, nem diminuía suas fortunas. Também não olhavam os conquistadores do seu povo com raiva e ira, pois não tinham orgulho e o amor a Deus e à pátria não mais existia neles ou nunca tinha existido.”

            Não poderia essa fala da autora, reproduzindo o que se passava na Roma antiga ser mais parecido com o que acontece no Brasil atual. A tirania exercida com a máscara da democracia usando a lei como forma de escravidão na forma de impostos, obrigando o cidadão trabalhar exageradamente para manter o sistema perverso e ganancioso em funcionamento com tendências expansionistas. Os cidadãos com perda da capacidade de se desesperarem, se deixam consumirem suas energias em fogo brando, e a terrível frase de Cícero termina por carimbar nossa fronte servil: “Cada povo tem o governo que merece”!

Publicado por Sióstio de Lapa
em 09/06/2015 às 00h01