O tempo é o administrador da vida, o que ontem era flores, hoje pode ser espinhos... e vice-versa.
Ontem eu estava festejando este dia com muita felicidade, meu peito inundado de paixão encantava a minha amada com fogos de artifícios emocionais, meus beijos, bandeirantes do prazer, seguia a coreografia dos abraços numa viagem mágica pelos caminhos do coração.
Hoje, depois de meses sem fitar os seus olhos, ela estava à minha frente. Dentro da sala de audiência da justiça, na providência do divórcio, para separar por direito o que de fato ela rompeu. Não digo que foi sem motivos, pois a qualidade do meu amor, e principalmente, os cuidados de pai, não foram suficientes para ela, e pior, foram inaceitáveis!
Mas, por que estranho feitiço do destino isso teria que acontecer justamente neste dia? Dia dos namorados? Logo que ela chegou reconheci sua silhueta ao longe, meu coração como sentinela foi quem logo advertiu com um baticum mais rápido e forte. Estava diferente, não era aquela moça, mais menina que mulher, que me encantara pela primeira vez; que fez ninhos em meus sonhos e promessas de utopia romântica... eu ria dos meus sonhos pecaminosos, quase pedófilos... mas fui castigado! Da mesma forma que Sara riu da impossibilidade quando os anjos disseram que ela iria ser mãe com idade avançada, eu também ri daquele idílio impossível de acontecer com aquela criança. Pois ela chegou na minha frente transformada em mulher e a paixão foi inevitável. Nem o calor das piscinas térmicas, nem o sol causticante das praias de areias brancas, conseguiam derreter tais emoções; nem a distância que separava nossos olhos conseguia separar nossos corações; nem os preconceitos, críticas e compromissos alhures conseguiam frear a atração de nossos corações um para o outro.
Foi a vez dos anjos rirem quando eu passei a morar com ela e a utopia se tornar realidade. Foi a vez dos anjos cobrarem uma multa pela descrença, pela ironia, como fez com Sara que deu o nome de “Isaac” ao seu filho, que significa riso. Comigo a multa foi mais severa. A minha utopia estava condenada a “destruição”, pois o meu coração não era compatível com o coração da minha amada.
Deus, como sofri para manter a utopia! Tentei amordaçar o meu coração, mas vi que me tornava um robô, o coração tem que ser livre para colorir a vida; tentei viver apenas como amigo, abrindo mão das delícias da intimidade que ela podia me proporcionar, queria pelo menos ter o seu contato físico, ouvir sua voz ao meu lado nas coisas mais corriqueiras, um simples sorriso para mim era uma grande recompensa. Mas nem isso os anjos permitiram!
Chegou o momento fatídico da minha expulsão. Assim como Sara exigiu a expulsão de Ismael e sua mãe devido o nascimento de Isaac, a minha amada exigiu a minha expulsão devido também o nascimento de uma criança e minha relação com sua mãe. Ismael e sua mãe foram para o deserto, apenas com um bornal com mantimentos; eu também fui para o deserto, apenas com minha roupa e livros.
Agora eu estava ali, frente a frente com ela. Lembrava que a ida de Ismael para o deserto deu origem aos muçulmanos e ao profeta Maomé; Isaac deu origem aos cristãos e ao profeta Jesus. Até hoje se digladiam com um ódio que não conseguem eliminar. Será isso mais um planejamento de vingança dos anjos por uma simples ironia? Será isso que eles querem ver também entre eu e minha amada?
Mas não permitirei isso. Eles podem ter uma vitória sim, ao nos separar, pois não depende só de mim. Mas não conseguirão nos ver digladiando com ódio, pois eu não permitirei. O meu amor por ela jamais deixará de existir no meu coração. Eles podem ter roubado a paixão que nos incendiou na juventude e fez acontecer a utopia que achávamos impossível, mas não conseguirão desalojar o amor que eu tenho. Somente Deus conseguiria fazer isso, mas o amor que eu tenho faz parte da Sua essência. Podem me bombardear com críticas, acusações, multas, penalidades... jamais deixarei entrar ódio no meu coração por aquela que aprendi a amar, o amor da mais alta qualidade e profundidade que eu já experimentei... se isso satisfaz a sanha de vingança desses anjos tão mesquinhos, sim, eu direi para eles: vocês não conseguem implantar o ódio no meu coração, mas ele já está impregnado de saudade, doída, angustiosa, como uma marca do amor que fica quando o ser amado se esfumaça nos distantes túneis do tempo.
Olho para ela naquela sala, ladeada pelo juiz, advogados, estudantes de direito, e a vejo explodir em lágrimas, lamentações, reclamações, desamparo, medo... Meu Deus, que fiz com aquela criança?!! Meus olhos também denunciam a amargura em meu coração... sinto o calor das lagrimas deslizarem pelo meu rosto impassível. Meu Deus, quanto sofrimento! E pior de tudo, tenho que ser honesto. Se o Pai permitisse que eu voltasse no tempo, sabendo a consequência de ironizar os anjos, eu voltaria a rir deles, pois sabia que iria saborear um amor sublime que jamais encontrei, nem que fosse por um minuto sequer.