Ao ler um trecho do livro de Taylor Caldwell, “O grande amigo de Deus”, deparei-me com um diálogo que aborda frontalmente umas das maiores virtudes que considero e procuro praticar: a verdade. Saul esta muito tempo fora de casa, e o pai não conseguindo suportar a solidão, suicidou-se. A questão agora era como se devia informar a Saul do acontecido.
- Não, o senhor não pode enviar esta carta – disse Aristo a Reb Isaac, a cuja casa fora chamado. – Saul bem Hillel é uma pessoa extremamente sensível. Sua carta possivelmente o destruirá e ele não deve ser destruído.
Reb Isaac, na sua dor, remorso e temor pela sorte eterna de Hillel bem Borush, quando fosse chamado perante um Deus severo para prestar contas do seu ato mortal, tinha escrito uma carta onde, contraditoriamente, deplorava o fato. Censurou Saul por sua evidente indiferença e desconsideração com o pai, o mais bondoso e terno de todos, fazendo com que este se matasse: era um julgamento da sua negligência e egoísmo filial. Filhos que amavam os pais e o demonstravam, jamais teriam tal tristeza. Mas os pais deixados a sós e abandonados numa casa vazia eram frequentemente levados, por sua mente atormentada pela ânsia e saudade, a esse ato e uma porção imperdoável dele jazia eternamente nas almas dos filhos negligentes. Quem, perguntava Reb Isaac, nessa carta impregnada de amargura, teve um pai melhor que Saul bem Hillel? Um pai que nunca se queixou da indiferença dos filhos? Não, ele foi terno demais para isso. Apenas sofreu. Reb Isaac não invocou exatamente imprecações religiosas sobre a cabeça de Saul, mas dava essa impressão. O pergaminho estava manchado pelas suas lágrimas idosas.
- É uma carta injusta – disse Aristo ao velho rabino, cujos olhos estavam vermelhos. – Saul amava o pai. E Séfora, aquela jovem e bela matrona, também. Conheci-os bem. Também conheci Hillel bem Borush muito bem, muito mais que a maioria dos seus... amigos. Desconfiei há muito tempo de suas intenções.
Reb Isaac olhou-o furiosamente com seus candentes olhos negros.
- E não procurou convencê-lo de que precisava viver? Você, que tinha mais motivo que a maioria para honrá-lo e ser grato?
- Foi por esse motivo que não tentei – respondeu Aristo. – Senhor, não podemos concordar nesse assunto, pois nossas filosofias diferem. O que eu compreendo, o senhor não entende. O que para o Senhor é crime contra seu Deus, não o é para mim. Nem para milhões de outros. Não pedimos para nascer. Mas podemos escolher quando morrer, pois certamente um homem tem dignidade! O senhor acredita numa vida depois desta. Eu não, embora deseje ao meu querido velho amo uma existência de felicidade. Como disse Sócrates, não se deve temer a morte, pois é apenas um sono eterno e o sono não é agradável? E se há vida após a morte, não pode ser pior do que esta. Tenha piedade. Não envie esta carta a Saul nem a Séfora bas Hillel. Procurarei Saul pessoalmente e lhe direi...
- O quê? – exclamou o rabino que, agora, enxugou às claras as lágrimas recentes.
- Que seu pai esteve doente durante muito tempo. O que, o senhor tem de concordar, é verdade. Que ele não desejou angustiar e assustar os filhos e por isso evitou informá-los. O que também é verdade, embora eu o veja agora balançando a cabeça. Por isso, quando estava no jardim, calmamente debruçado na ponte, foi tomado por um violento tremor, uma última vertigem, um desmaio, e caiu nágua. Seu rosto, visto no lago, estava tranquilo e imóvel – e estava – e, consequentemente, ele não soube estar morrendo e por isso não lutou. Acreditamos, direi a Saul, que morreu ainda antes de tocar a água. Peço-lhe, não continue a balançar a cabeça. Pois o fato é que Hillel bem Borush morreu há muito, muito antes daquela tarde definitiva, na tranquilidade dos seus jardins..
- Sofismas – disse o rabino. – Vocês, gregos, vivem cheios de sofismas¹.
- Um sofisma é melhor que uma verdade cruel – replicou Aristo, esboçando um sorriso. – E conhecemos a verdade? Não. Ela jaz no coração de Hillel bem Borush, ao abrigo de olhares alheios.
- Então, por que não pode dizer a Saul, você, que é tão amante de sofismas, que Hillel morreu tranquilamente na cama e não no lago?
- Pelo fato de o mundo estar cheio de línguas ferinas. Não podemos ter certeza de que um dia, um visitante de Jerusalém, que conheça Borush e Saul, não vá dizer a este que seu pai foi encontrado no lago. Nós... precisamos ser discretos. Não diremos a ninguém o que sabemos e assim Hillel repousará ao lado da sua mulher, sem mancha. Mas Saul tem imaginação. Se eu lhe mentir e disser que seu pai morreu na cama e ele mais tarde souber que eu lhe menti, então terá a certeza de que o pai cometeu suicídio e que eu só quis poupá-lo. Não ficará agradecido e a partir daí sua vida será um sofrimento só. É isso o que deseja o senhor, seu velho mentor?
O rabino ficou em silêncio e as lágrimas tombaram dos seus olhos, embebendo-se na barba branca. Então falou, com voz rouca:
- Agora posso compreender como vocês, gregos, seduziram nosso povo em Israel, com seus sofismas e seus argumentos inteligentes.
Aristo deu uma risadinha.
- Deseja que eu lamente isso? Não. Estou satisfeito. Ouvi dizer que seus profetas eram homens sombrios, sem alegria de viver, com apenas palavras de destruição e de advertência, de ameaças e de castigo e outras coisas desastrosas. Soube que essas coisas assim profetizadas se realizaram. Mas para que devem os homens ficar apreensivos por antecipação? Todos os homens não erram e desejam as coisas boas da vida? É a sua natureza. Senhor, peço-lhe... estou vendo as palavras em sua língua: não me fale do objetivo dos profetas e do semblante ameaçador do seu Deus. Cansei de ouvi-lo de Saul, que se esforçou para me converter. O senhor e eu temos diferentes pontos de referência, que nunca se encontrarão. Mas numa coisa podemos concordar: os deuses amam os homens misericordiosos.
Interessante essa circunstância, pois Aristo, ao usar um sofisma ao invés da verdade, parece estar sendo mais misericordioso do que o Rabino que quer ser verdadeiro, de acordo com o que imagina ser real.
Apesar de amante da verdade também sou mais inclinado a ficar do lado de Aristo, pois, não sendo um ato de maldade é antes de tudo um ato de misericórdia, de compaixão, pelos erros humanos. Mesmo porquê, é como Aristo argumenta, ninguém é dono da verdade, pois Hillel estava sozinho nessa ocasião, e ninguém pode dizer que a argumentação de Aristo não seja verdadeira.
Concluo dessa forma que a verdade é um meio de caminhar com segurança na vida e sintonizado com o Pai, mas devemos ser sábios em avaliar cada circunstância e somente liberar a verdade num nível que possa ser compreensível e que não acarrete prejuízos desnecessários sobre ninguém. Parece um paradoxo, o uso da verdade trazer prejuízos sobre alguém, mas o caso de Saul mostra que isso pode ser possível. Vivemos ainda numa comunidade muito simplória, que não tem comportamento superior, que se deixa abater por uma simples recusa de alguém ao seu lado fazer algo para sua contrariedade.