- Está bem. Você sabe que nós, gregos, temos um altar ao Deus Desconhecido. Está dito que, num dia distante, Ele se instalará nesse altar para que O adoremos pela última vez, pois está dito que Ele é maior que o próprio Zeus. Os egípcios, babilônios e persas têm também esta lenda... e O esperam. É uma velha lenda. Ele governará o mundo dos homens para sempre, quando chegar. Os judeus O chamam Messias, porém Ele pertence a todos.
- Ouvi a mesma coisa do meu nobre amigo Hillel bem Borush.
- Ah, sim. Para ser conciso a respeito, corre o boato de que aquele santo rabino, que surgiu recentemente, é o Deus Desconhecido.
Aristo deu uma gargalhada que continuou até lhe virem lágrimas aos olhos. Um dos rapazes, vendo seu rosto avermelhar-se e ouvindo sua respiração ofegante, apressou-se a encher seu cálice. Aristo bebeu o vinho de um gole e pareceu estar a ponto de sufocar. Olhou alegremente para o anfitrião com uma bruma nos olhos e esperou companhia para seu riso. Porém, para sua surpresa, Télis estava com ar muito sério e totalmente silencioso, olhando as mãos apertadas, não parecendo ter ouvido a hilaridade de Aristo. O rosto novamente corado inchou e contraiu-se, surgindo nele uma lágrima, para surpresa de Aristo.
- Eu vi o Deus Desconhecido – disse Télis.
Ele também ficou louco?, perguntou-se interiormente, desanimado.
- Por favor, tenha paciência- disse Télis, desta vez olhando para Aristo com tal emoção, com tal paixão, com tal insistência, que este ficou francamente surpreso, pois tinha considerado Télis um homem realista e pragmático, dominado o tempo todo pelo raciocínio e que só tinha desprezo pelo homem de mente excitada e desordenada. – Morei em Israel muito tempo – disse Télis. Sei que, com muita frequência, aparecem rabinos, cujos seguidores dizem ser ele o Messias dos judeus, pois fazem milagres e são irrepreensíveis. Assim, há uma lei no Sinédrio ordenando que esses rabinos, ou professores, ou habitantes do deserto, devem ser levados ao tribunal para serem interrogados e examinados, pois mesmo os cultos e sábios do Sinédrio estão ansiosos pelo seu Messias. Mas em tempo algum esses rabinos declararam ser o Ungido e ficaram tristes porque seus seguidores afirmaram isso. Desejavam apenas servir ao seu Deus em paz, disseram, e então o Sinédrio liberou-os. Esses homens humildes e gentis não blasfemaram. Como sabe, o blasfemador entre os judeus merece a morte e habitualmente é visitado por ela.
“Mas ouvi em Cesaréia que este novo rabino não negou, para os pobres de sua província, que fosse o Messias, nem repreendeu seus seguidores por espalharem tal coisa. Isso não me interessou. Bastava que fosse um milagreiro. Em minha cama, na casa dos meus amigos, fiquei pensando. Fiz perguntas. O milagreiro estava na província da Galiléia, na mísera cidade de Cafarnaum, à beira do mar da Galiléia. Meus amigos supersticiosos ofereceram-se para mandar uma comitiva buscar o rabino judeu... eram bondosos demais. Cafarnaum fica muito longe.
“Mas, naquela noite, tive um sonho muito misterioso. Sonhei que uma enorme mão branca como mármore estendeu-se para mim e uma voz – belíssima – me disse: ‘Venha! Espero-o em Cafarnaum.’ Assim, de manhã, embora ainda estivesse muito fraco para erguer a cabeça, disse aos meus hospedeiros que iria até aquela cidadezinha miserável nas colinas maltratadas. Eles são gregos e ficaram consternados. Chamaram para ver-me um ancião judeu de muito renome em Cesaréia, que me disse que, apesar da maioria dos judeus acreditar que o Messias aparecerá em celeste esplendor, de forma a que todas as nações soubessem dEle instantaneamente, foi profetizado que poucos ou ninguém O conheceriam.
“O ancião repetiu as palavras de um dos seus profetas, constante dos Livros Sagrados:
“Ele foi desprezado e rejeitado pelos homens, Ele, um Homem de sofrimentos, familiarizado com a aflição. E, como um de quem os homens escondem o rosto, foi desdenhado e não o estimamos. Certamente, carregou nossas penas e nossos sofrimentos! Mas nós o consideramos atingido duramente por Deus e angustiado. Contudo, Ele foi ferido por nossas transgressões, foi atingido por nossas iniquidades. Sobre Ele caiu o castigo que nos tornou indenes e, com seus vergões, ficamos curados.”
Confesso – continuou Télis – que não compreendo essas palavras, que nada significam para mim. Mas o ancião não insistiu para que eu desistisse de ir a Cafarnaum. Contei-lhe meu sonho. Ele cobriu a cabeça, à maneira dos judeus, pareceu rezar, colocou as mãos sobre mim, abençoou-me e perguntou se me sentia mais forte. Depois que se foi, senti-me de fato mais forte e preparado para a viagem, de acordo com meu sonho.
Aristo ficou mudo. Foi como se ele tivesse subitamente sido tomado por um encanto. Olhou para o rosto cheio e avermelhado do anfitrião, para seus olhos faiscantes e jovens, permanecendo em silêncio.
- Meus amigos foram bondosos – disse Télis. – Parti na manhã seguinte no veículo mais luxuoso, coberto de tapetes, servido pelos criados mais solícitos. Foi uma longa viagem até aquela região de colinas de basalto negro e terras, montanhas desoladas e valezinhos famintos. Mas isso passou como um sonho. Dormi e repousei. Estava tomado do mais ardente desejo de olhar de frente aquele santo rabino. Meu sangue continuava a fluir pela boca. Às vezes delirava, febril, e paramos em diversas estalagens. Houve outras vezes em que acreditei já estar morto, pois tudo era bruma à minha frente, na qual faiscavam brilhantes raios de luz. Frequentemente, estive inconsciente. A morte estava agarrada à minha garganta. Um pesado torpor tomou meus membros e recusei comer.
“Você não conhece essas cidadezinhas judias, tão pobres, tão exauridas pelos cobradores de impostos, tão desesperadas, tão abatidas, tão maltrapilhas, triste e miseráveis. Vivem cheias de aflição e desespero. Vivem no medo e apesar disso são orgulhosas. Cafarnaum era típica. Eu estava então mudo, os dias eram quentes, as noites frias e a morte estava próxima. Encontramos um pequeno albergue muito rude e nele passamos a noite.
“No dia seguinte, os bondosos criados perguntaram pelo santo rabino e disseram-lhes que o homem podia ser encontrado nas ruas, dirigindo-se ao povo sofredor, levando-lhe uma mensagem de esperança em sua angústia. Eles o amavam. Amontoavam-se em torno dele, tocando suas vestes, suplicando-lhe em lágrimas, e ele sorria suavemente, falando-lhes da misericórdia do seu Deus. Disseram que suas palavras os comoviam menos que seu rosto e maneiras, pois parecia todo amor, força, energia e consolo.
“Assim, no dia imediato, determinei aos criados que me conduzissem numa liteira pelas ruazinhas apavorantes de Cafarnaum, à procura do santo rabino. Pensei que ia encontrar um ancião venerável, de barba branca e passos vacilantes, pois existiam muito poucos santos homens moços! Mas o encontramos subitamente, pois ele estava falando junto de uma fonte, rodeado de uma multidão de mulheres, crianças, velhos, rapazes e virgens, de roupas grosseiras, mãos cheias de cicatrizes, esforçando-se em olhá-lo, chorando, tentando tocá-lo. As mulheres levavam cestos na cabeça, contendo verduras murchas, algumas tinham jarros de água no ombro e seus filhos estavam quase nus em sua pobreza; os velhos, enfraquecidos pela idade e pela fome, sentavam-se nas pedras, aos pés do rabino. Bastava-lhes que ele estivesse ali.
“Levantei-me com grande esforço da liteira e vi-o.
Télis fez uma pausa. Não pôde mais conter as lágrimas. Aristo franziu o cenho. Tudo aquilo parecia indigno do seu amigo.
Garanto-lhe – disse Télis com voz rouca e perturbada – que nunca vi um homem como aquele! Ah, ele era pobre, vestia roupas grosseiras, usava sandálias de sola de madeira com cordas até os tornozelos e uma capa pobre e remendada. Mas parecia um rei! Era belo como o povo da Galiléia que não se misturou a nós, belo como os macedônios e o povo de Cós, tinha cabelos e barba louros e olhos azuis como o céu ateniense. Era jovem. Alto, musculoso, varonil, rosto e mãos queimados de sol, transpirava força e majestade. Era um rei em andrajos.
“Reconheci-o logo. Não ria, meu amigo. Reconheci-o imediatamente como o Deus Desconhecido e não me pergunte como. Eu mesmo não sei! Mas tive certeza e fui tomado de uma indizível alegria.
“Em torno dos ombros largos, usava o inevitável xale de rezar dos judeus e sacudiu as borlas quando falou ao povo com o tom mais suave. Não sei o que ele disse. Exultante, não tirei os olhos dele. Vi-o tocar em aleijados, afagar criancinhas nos braços das mães e foi como se um deus transigisse com aqueles pobres destroços; seus rostos fulguraram de alegria.
“Quem sou eu, perguntei-me, para que o Deus Desconhecido se digne olhar-me ou prestar-me atenção? É suficiente que eu O tenha visto, que O tenha conhecido. Fiquei em condições de partir porque uma profunda paz desceu sobre mim, a dor e a ansiedade desapareceram, a morte não tinha mais importância para mim. Eu tinha sido abençoado pelo simples olhar que Lhe dirigi. Eu queria cantar, abraçar, rir, amar, pois era como se tivesse remoçado e o cego tornado a ver. Que era minha doença para mim?
“Foi então que Ele virou Seu rosto heroico para minha liteira e nossos olhos se cruzaram através de um grande espaço, em silêncio. Depois, Ele sorriu. Ergueu a mão me cumprimentando, como que reconhecendo um amigo que tivesse feito uma longa viagem para vê-Lo. Imediatamente, caí num sono profundo e demorado. Só acordei algum tempo depois e, nessa altura, já estávamos longe de Cafarnaum.
“Mas, meu amigo! A força e a saúde fluíam no meu corpo! A hemorragia tinha cessado. Eu estava tremendamente faminto. Exigi comida. Quando chegamos a uma estalagem, saltei da liteira e os criados me olharam espantados. Comi como um faminto.
Impossível, pensou Aristo. Ou então ele havia encontrado um feiticeiro mágico.
- Olhe para mim! – gritou Télis. – Estou na mais perfeita saúde! Os médicos ficaram perplexos. Não encontraram nenhum defeito no meu corpo, nenhum câncer! Não aconteceu com o decorrer dos dias. Chegou num piscar de olhos, num instante. O Deus Desconhecido me curou com um simples olhar do Seu olho compassivo!
Aristo pigarreou e disse:
- Então você vai tornar-se judeu por gratidão?
Télis o olhou com ar estranho.
- Sabemos que os judeus fazem proselitismo, que procuram atrair todos os homens para sua crença em Deus. Mas aquele a Quem olhei não me dirigiu a palavra. deu-me apenas Sua santa compaixão, como de irmão para irmão. Espero Sua chamada.
- Sua chamada! – exclamou Aristo, cada vez mais incrédulo.
- Certamente ele virá – retrucou Télis. – Enquanto isso, me tornarei mais honesto.
Aristo refletiu. Diziam que os judeus podiam lançar os mais assombrosos encantamentos. Era evidente que um deles havia sido lançado sobre Télis por um rabino judeu, pobre e sem nome. Aristo ficou contente pelo amigo ter recobrado a saúde. Contudo, se ele estava a ponto de tornar-se um homem honesto, isso liquidava todas as ambições de Aristo aprender novos segredos de conseguir riquezas.
- Você saberá! – disse Télis, com voz alegre, de absoluta convicção. – Você também saberá!
Aristo pensou nessa perspectiva deprimente. Desejava desfrutar a vida e todos sabiam que os judeus não desfrutavam a vida. Aquele rabino anônimo era pobre e andrajoso. Poderia fazer uma fortuna na Grécia e em Roma, cujos habitantes eram supersticiosos.
Télis transpirava felicidade e vigor, coisa que Aristo não podia negar, pois o moribundo recebera novas forças e juventude. Aristo balançou a cabeça, numa negação vacilante.
Este trecho longo do livro de Taylor Caldwell, “O grande amigo de Deus”, não poderia de transcrever na íntegra, pois dá uma ideia magnífica da compreensão, incompreensão e conversão ou não a um pensamento.
Tive dessa forma uma nova visão, magnífica, do perfil psicológico de Jesus. É mais um detalhamento de um modelo de comportamento no qual posso espelhar as minhas ações.