Lembro de ter solicitado um pagamento inusitado de meu trabalho médico em Caicó há algum tempo. O pai de uma família foi acidentado na estrada, estava em coma em Natal, sem possibilidade de retorno à vida. Atendi a família que se encontrava traumatizada naquele momento, principalmente os filhos, e ao ser perguntado pelo pagamento eu condicionei à volta do pai, o que só seria possível com um milagre.
Hoje eu tive a oportunidade mais uma vez de ser pago de forma inusitada.
A mãe de um paciente que se encontra preso, com muita dificuldade de saúde, com risco da própria vida, me procurou no Hospital no horário que eu estava visitando os pacientes internados. Este paciente foi atendido pela primeira vez por mim, vindo algemado e escoltado da cadeia por policiais. Ficou na sala juntamente com a mãe e o policial que lhe fazia a guarda. Disse as suas queixas, examinei seu psiquismo e prescrevi a medicação para ser tomada regularmente.
Cerca de 30 dias depois essa mãe me procura mais uma vez no consultório, depois que atendi os pacientes agendados, dizendo da dificuldade do filho na cadeia, que ela precisava de um documento solicitando a sua transferência da cadeia para o hospital, onde poderia se tratar de forma mais adequada. Como ele havia se consultado há pouco tempo comigo, como eu sabia que o seu estado psíquico justificava o pedido, atendi a mãe, sem cobrar nada.
Agora, cerca de 15 dias depois que lhe dei a declaração médica gratuita para seu filho, ela vem fora do meu horário no consultório, estava me deslocando para cumprir atividades em outro local de trabalho, e ela me solicitava mais uma vez outra declaração, pois aquela o juiz não havia aceitado. Como seu filho continuava em situação precária, inclusive com sintomas de infecção, ela mais uma vez recorreu ao juiz mostrando a situação e a pertinência da transferência para um hospital, e ele exigiu que a mãe levasse outra declaração para ele. Por esse motivo ela estava mais uma vez pedindo esse documento. Mostrei a ela a inconveniência de fazer isso, que fazia mais de mês que eu o havia atendido, já havia dado há pouco tempo uma declaração nesse sentido, que eu estava me deslocando para outro serviço, que havia acabado de dispensar uma consulta naquele momento por falta de tempo, que eu necessitava ver o seu filho no consultório para efetuar novo procedimento. Ela argumentou que era difícil conseguir uma guarnição para seu filho voltar ao consultório, que isso poderia levar até mais de um mês e que o seu filho poderia morrer nesse período. Notei as lágrimas correrem no seu rosto e avaliei que o risco de agir fora dos princípios éticos do CRM, de atestar na presença do paciente, comparado com a possibilidade do paciente vir ao óbito por falta desse documento, considerei que a vida humana era mais importante. Não importava se algo desse errado e eu fosse interpelado pela comitê de ética do CRM sobre esse procedimento irregular, e viesse a ser punido.
Fiz o documento e entreguei a mãe, que agradecida perguntou quanto era, que ela poderia passar na secretaria e fazer o pagamento. Eu disse que não precisava, poderia ir embora com o documento tão importante para ela.
Depois fiquei a refletir porque havia agido dessa forma, se a mulher estava disposta a pagar por aquele serviço que eu ofereci de forma tão irregular, mas tão necessária para ela. Cheguei a conclusão que, diante da minha resistência de não fazer um trabalho fora da ética, ela ofereceu a moeda das lágrimas, e eu aceitei. Intuitivamente ela percebeu que a oferta do pagamento em dinheiro antes do serviço ser realizado não iria surtir efeito, pois eu estava alegando uma defesa ética para não fazer. Portanto, somente as lágrimas poderiam me demover da minha posição e foi isso que aconteceu. E foi confirmado com a minha negativa de receber o pagamento pecuniário, eu já me sentia pago.