Trocando mensagens com minha segunda ex-esposa, de forma amistosa e gratificante, percebemos, ambos, que minha memória anda ruim e a dela continua ótima. Falamos de livros e eu citei um que pensava que ela ainda não tinha lido. Ela respondeu que já lera e que tinha muitos outros ainda na mesma linha que eu havia lido e rabiscado, como sempre faço nas minhas leituras, mesmo sabendo que o livro era dela, uma má educação, reconheço, que eu prefiro assumir do que não colocar algum sublinhamento, destaque, ou pensamento meu dentro do pensamento do autor.
Fiz um comentário sobre isso, que esses livros que os meus rabiscos provam que eu já os havia lido, mas que eu não lembro mais dos seus conteúdos. É como se fossem livros novos para mim. Então comentei de forma jocosa que eu corria o risco de me apaixonar por ela uma segunda vez por não lembrar da primeira. E conclui que o que evitaria isso seria a memória dela que continuava ótima.
Depois fiquei a refletir sobre isso, não é que eu queira voltar com nossa convivência conjugal, tanto eu como ela sabemos agora que somos incompatíveis nesse campo. Ela pensa de uma forma, tem os seus paradigmas, e eu tenho os meus, diametralmente opostos. E sabemos que ambos temos firmes convicções para não se deixar subornar ou influenciar pela vontade do outro. Mas a situação é deveras interessante para ser abordada de forma literária, fictícia. Então me propus a fazer um conto que coloco aqui, no seguimento deste diário.
AMOR RENOVADO
Não pensava jamais voltar a conviver com ela como marido ou mulher, ou mesmo como amigos. Não é que eu não gostasse da sua companhia, pelo contrário, das mulheres que eu conheci, ela era a mais inteligente, mais culta, mais filosófica, e escrevia maravilhosamente. Muito melhor do que eu, que sem falsa modesta, digo sempre que escrevo melhor do que falo. Mas ela tinha uma forma de ver o mundo muito diferente da minha visão, principalmente no que diz respeito aos relacionamentos afetivos. Eu desenvolvi o pensamento até certo ponto perigoso, na visão de muitas pessoas. Desenvolvi a convicção que recebi de Deus a missão de praticar o Amor Incondicional, sem barreiras ou preconceitos, como uma ordem direta dEle para mim. E isso implicava na forma de amar incluindo a qualquer pessoa, e que se houvesse simpatia mútua e circunstâncias favoráveis ao Amor Incondicional, o relacionamento podia se aprofundar sem qualquer barreira social ou preconceitos culturais, até o relacionamento sexual, com todas as consequências que isso podia trazer.
Ela nunca aceitou esse modo de viver que eu fazia questão de esclarecer para ela, nem ela aceitava para ela e também não aceitava, que eu como seu companheiro pensasse e me comportasse dessa maneira. E eu não aceitava mudar o meu modo de agir para seguir a vontade dela, sabia que isso iria me despersonalizar e passaria a viver em função do outro. O mesmo direito eu também dava a ela, nunca iria obrigar a ela pensar e se comportar como eu, se tal ela não aceitasse por vontade própria, por seu livre arbítrio, pois não queria que ela vivesse como robô ao meu lado.
Criou-se assim uma incompatibilidade entre nós difícil de resolver, e o tempo, ao invés de ajudar, somente piorou a situação. Chegou ao clímax da intolerância e a separação ocorreu até de forma traumática, com muita emoção negativa sendo purgada, principalmente da parte dela.
Passamos a viver separados, e agora o tempo se mostrou nosso aliado, quando no passado, na nossa convivência, mostrou-se adversário. Voltamos a conversar como bons amigos e trocar ideias sobre leituras, hábito muito valorizado por nós.
Mas algo novo começou a acontecer entre nós, algo que não imaginávamos que fosse acontecer e que começou sem percebermos. Tanto eu quanto ela indicávamos leituras um para o outro, e quando íamos conferir, pensando que ainda não havíamos lido aquela obra, víamos que estávamos enganados, principalmente eu, que gostava de rabiscar minhas leituras introduzindo meu pensamento junto ao pensamento do autor. Ríamos quando percebíamos que isso acontecia, encarava como uma brincadeira que a velhice estava nos trazendo. O tempo ia cada vez mais aprofundando essa “brincadeira” e nós até que gostávamos, pois líamos um livro pela segunda ou terceira vez como se fosse pela primeira vez.
Mas outro fenômeno se associou a esse e o prejuízo na memória não fez a gente perceber. As rusgas que no passado nos separava, também foram esquecidas. A simpatia que naturalmente sentíamos um pelo outro, e que fez nos apaixonar no passado com a força dos hormônios, voltou a se manifestar. Agora não tinha o apelo do desejo sexual, nos contentávamos em ficar um ao lado do outro jogando conversa fora, comentando determinado autor, ou apreciando algum aspecto da natureza. Quando eu ia embora, não havia a cobrança de quando eu voltaria, apenas a leve sensação de uma saudade que se instalava, mas que era atenuada pelo saber de que voltaríamos a nos encontrar. Cada novo encontro era retomado o prazer da convivência, não havia perguntas investigativas do que eu estava fazendo lá fora com A ou com B. O monstro que no passado fustigava as nossas vidas, o ciúme que dentro dela era incontrolável, não mais existia. Certamente o esquecimento do passado contribui decisivamente para isso acontecer.
Dessa forma eu vi o nosso amor florescer outra vez, mesmo que mutilado das lembranças do passado que nos encantou a juventude. Mesmo assim era um sentimento lindo, adaptado a lei do amor, integrado à Natureza. Nascia todo dia assim com nasce o sol, e repousava à noite sem exigir uma presença constante. Cada reencontro reacendia o mesmo prazer do dia anterior. E assim vivemos os últimos anos de nossas vidas, lendo velhos livros já tantas vezes lidos e esquecidos, e aproveitando um amor que o ciúme tanto machucou e sufocou, mas que o esquecimento apagou as lembranças que alimentava essa fera tão cruel.
Meus últimos dias foram cheios de beleza imediata que eu tinha que construir a cada momento. Mesmo que eu não lembrasse do ontem, sentia grande prazer com o presente, ao lado de uma pessoa amada, com coisas que gosto de fazer... e com a perspectiva de que amanhã tudo iria se repetir.
Quando a morte me transportou e eu cheguei aqui no mundo espiritual, reconheci toda a dinâmica do que acontecia na minha vida. Fiquei triste, pois não podia mais voltar à presença do meu amor, que com certeza estaria me esperando. Fui até a sua casa, e a vi serena, lendo um livro, sentada perto das plantas que tanto amava. Percebi que vez por outra ela olhava para o horizonte como se esperasse acontecer algo agradável, de chegar alguém que ela gostava... mas nada acontecia e ela voltava a leitura. Percebi que, apesar dela estar com algo vazio dentro de si, estava feliz! Eu, é que não sei... eu tinha retomado todas minhas lembranças e sai dali com as lágrimas lavando o chão, antes que meus sentimentos cheios de lembranças denunciassem a minha presença.