Pedro acabara de sair da sorveteria carregado de potes de sorvetes para consumir durante a semana. Das delícias da gastronomia era a que mais gostava. Não importava que isso fosse lhe trazer gorduras extras.
No caminho de casa viu de relance um mendigo à sua esquerda, tentando comer algo que tirava de dentro de uma lata. Era o dia dos namorados, e Pedro pensou como seria a vida dessa pessoa, que talvez nem soubesse que hoje se comemorava o dia dedicado ao amor, mesmo que fosse um amor entre casais. Mas Pedro não fazia essa distinção, para ele o Amor Incondicional era a virtude mais importante, ensinada pelo Mestre de Nazaré e que devia ser colocada em prática a partir do coração de cada pessoa para ser construído o Reino de Deus.
Quando Pedro viu o mendigo, fez associação com o Amor e o Dia dos Namorados, sua consciência passou a se agitar. “Não era este o dia que os namorados demonstram o seu amor por aqueles com os quais se comprometem? Ele também não se sentia comprometido com o Amor Incondicional, e a esse Amor não estava disposto a dedicar sua vida? Ele tinha muitas pessoas a quem podia chegar perto e reverenciar o Amor Incondicional através delas... mas aquele pobre abandonado também era uma delas! E por que ele deveria manifestar o seu amor somente aquelas pessoas perfumadas, bonitas, sensuais, educadas, bem alimentadas e que demonstram que o amam também? Ele não sabia que o Amor Incondicional orienta amar ao próximo, quem quer que seja ele? Que fazendo assim a pessoa demonstra amor ao Amor Incondicional? E por que ele acaba de passar por uma pessoa necessitada, que estava próxima, mas que ele estava lentamente se distanciando com seu carro luxuoso? É assim que ele reverencia no Dia dos Namorados o seu grande amor pelo Amor Incondicional?”
Cada vez que essas perguntas circulavam na mente de Pedro, mais ele diminuía a velocidade do carro, até fazer o retorno. Voltou àquela calçada onde encontrou o pobre maltrapilho com sua lata. Parou o carro perto dele, pegou uma das caixas de sorvete, e fez sinal com a mão. O pobre, com olhar assustado, fez esforço para se levantar e estendeu a mão para receber o presente. Pedro pode ver os dedos deformados que surgiram de uma manga de casaco esfarrapada.
- Feliz Dia dos Namorados - disse Pedro - como é seu nome?
- Eu sou Gilmar, meu capitão - disse o pobre - fazendo um gesto de continência.
- Ficas com Deus – se despediu Pedro.
Pedro voltou a pegar o caminho de casa, sua mente agora silenciosa só ouvia ao longe o murmúrio da consciência: “É, você conseguiu dar um cartão de amor ao Amor Incondicional, ele deve estar satisfeito contigo. Nesse grande incêndio do egoísmo que toma conta da sociedade, tu fostes um pequeno beija-flor a levar sua gota de agua. Certamente aquela pessoa, naquele momento, provou o afeto de outro ser humano. Talvez as suas dores físicas e emocionais naquele pequeníssimo espaço de tempo que ouviu a tua vos, tenham sido atenuadas. Talvez ao provar o sorvete que tem nas mãos ele consiga fazer uma diferença entre o doce que lhe afaga a alma, do amargor da cachaça que lhe alivia as dores. Talvez no outro dia quando o sol lhe acordar ao bater no rosto ele não se lembre de nada do que aconteceu, mas talvez ele perceba ao notar a caixinha vazia de sorvete ao seu lado que Deus existe, que existe ainda esperança, que ele deve ter algum irmão perdido nessa imensa selva de pedra que lhe consome a vida”.
Sim, Pedro, meu amigo, é como diz a música de Raul Seixas, “Quem te fez com ferro fez com fogo, Pedro / É pena que você não sabe não. / Vai pro seu trabalho todo dia / Sem saber se é bom ou se é ruim / Quando quer chorar vai ao banheiro / Pedro, as coisas não são bem assim / Toda vez que eu sinto o paraíso / Ou me queimo torto no inferno / Eu penso em você meu pobre amigo / Que só usa sempre o mesmo terno / Pedro onde você vai eu também vou / Mas tudo acaba onde começou / Tente me ensinar das tuas coisas / Que a vida é séria e a guerra é dura / Mas, se não puder cale essa boca, Pedro / E deixa eu viver minha loucura / Todos os caminhos são iguais / O que leva à glória ou a perdição / Há tantos caminhos, tantas portas / Mas, somente um tem coração / E eu não tenho nada a te dizer / Mas, não me critique como eu sou / Cada um de nós é um universo, Pedro / Onde você vai eu também vou.”
Sim, Pedro, meu amigo, você vai ter que descobrir quem és, se aquele que ficou na calçada ou esse que dirige o carro... se foi você que fez a caridade de ofertar um sorvete para provar o seu amor, ou se foi o pobre que fez a caridade de você ter a oportunidade de provar a si mesmo que é humano e filho de Deus.
Enfim, deixemos que o Amor lhe ajude.