Ele nasceu com uma deficiência, no início imperceptível, mas à medida que crescia e amadurecia, mais ficava evidente. Quando passou a compreender as razões do mundo, da natureza, e as consequências para os seres que se engalfinhavam na lutas pela sobrevivência, sempre encontrava motivos para lastimar algum fato, alguma interpretação. Este era o seu defeito, essa interpretação sentimental de algo doloroso por algo que não conseguia ficar contido no seu peito, tinha que explodir na mente e extravasar nas lágrimas.
Quando assistia um documentário e via a leoa correr desabaladamente no ataque a uma gazela indefesa, para se alimentar e aos filhotes que deixara esperando, o resultado sempre era lágrimas, lastimando a gazela se a leoa tivesse sucesso, ou sintonizando com a frustração da leoa por ela não ter alcançado o alimento para si e seus filhotes.
As lágrimas fluíam também quando ele passava na igreja e testemunhava um casamento, batizado ou missa de corpo presente. Eram lágrimas de alegria por ver um casal mergulhado no oceano de amor resolvendo viverem como uma só pessoa durante toda a vida; eram lágrimas de júbilo ao perceber o choro da criança que recebia o frio da água batismal sinalizando a chegada de mais um cristão, mais um irmão para lhe fazer companhia na Terra; as lágrimas podiam também ser de tristeza por ver aquele corpo inerte, que com certeza criou tantos sonhos, mas agora partia sem atingir sua meta, como já presenciara tantas vezes.
Ele percebia que o seu problema se aprofundava a cada dia, mês e ano que amadurecia e agora, que o tempo enchia de neve os seus escassos cabelos, que as rugas desenhavam uma melancólica alegoria nos traços de sua face, que ele não se reconhecia mais no espelho, aquele jovem de 20 anos que ele nunca deixou de ser, agora ele não conseguia controlar os rios dos seus olhos em nenhum momento.
Nem mesmo o sono conseguia lhe trazer alívio, pois acordava sempre banhado nas lágrimas, qualquer que fosse a natureza sonho: dramático, lúdico, festivo... sempre existia uma interpretação, vigil ou sonífera que provocava as lágrimas.
Estava entrando num nível psicótico, pois apenas na reflexão do que acontecia no ato da respiração, ele ficava sensibilizado: pelo oxigênio ser capturado nos pulmões através das hemácias e ser mantido sob trabalho forçado dentro das células, da mesma forma que ficava solidário com as reclamações que ele imaginava o gás carbônico estava fazendo, por ter sido criado dentro da célula e agora ser expulso sem receber satisfações. E ele sabia que era o causador desse ciclo “desumano” dentro do seu corpo, que não queria dar para ninguém, já que não queria que isso acontecesse com ele, numa bela atitude cristã. Ele até que tentou em algumas ocasiões nas quais as lágrimas jorravam com volúpia devido essa compreensão, a parar o ato da respiração, sem capturar oxigênio ou expulsar gás carbônico, mas não conseguia manter esse clima de justiça interna, celular, bioquímica, por mais de um minuto.
Assim ficou conhecido aquele homem que jorrava rios. Ele sentia-se diferente, percebia que não havia sentido emocional para tanto, e que era vítima de um distúrbio fisiológico, sem precedentes. Rogava a Deus o benefício da cura, mesmo que durante o ato as lágrimas jorrassem com força. E Deus parecia não se incomodar com essa aflição, não acontecia nada que atenuasse o problema. Mas Deus nunca fica indiferente ao sofrimento dos seus filhos, mesmo sabendo que tudo que acontece é porque cumpre o pagamento de alguma dívida do passado, na obediência da Lei de Causa e Efeito.
Ele não sabia, ou melhor, não lembrava, que havia causado torrentes de lágrimas em milhares de pessoas na sua última experiência de vida, quando pertencente ao Partido Nazista tinha liderado com frieza a morte de tantos nos campos de concentração. Foram aquelas lágrimas que antes falharam na irrigação de sua consciência, que agora fluíam sem nenhum controle, num mecanismo perfeito de compensação sideral. Ele que saíra deste mundo sem ter sido alcançado pela justiça humana, jamais iria fugir também da justiça divina.