Não sabia ainda nada sobre o amor... eu era uma criança de oito anos quando sem saber porque desenvolvi uma atenção toda especial por uma coleguinha da sala de aula. Era uma menina esbelta, de porte aristocrático, grandes olhos, sorriso enigmático, pele morena, curiosa, inteligente. Não posso dizer que era minha amiga, eu pouco falava com ela, apenas a olhava à distância. Afinal eu era muito tímido para me aproximar e começar uma conversa, principalmente quando o meu coração ficava inquieto com a pessoa, como acontecia quando eu a via. Por isso eu posso dizer que foi a primeira manifestação de amor romântico dentro de mim, pois eu ficava imaginando e sentindo como seria bom uma aproximação com ela, de conversar, ver o seu sorriso dirigido para mim, a sua voz me indagando ou respondendo. Ela não percebia essas minhas inquietações, a vontade de fazer algo de bom para ela, que ela pudesse sentir algo de bom vindo de mim assim como eu sentia algo de bom vindo dela, apesar dela não fazer nenhuma ação nesse sentido.
Foi um dia especial para mim, que ficou incrustado na minha memória, quando eu ganhei um livro de histórias, um gibi colorido, que achei a coisa mais encantadora. Logo pensei na minha pequena “amada”, que ela devia sentir o que eu estava sentido ao ler aquelas histórias e ver as gravuras. Enchi- me de coragem e levei o gibi para a escola, mas como eu não tinha coragem suficiente para chegar perto e falar sobre ela do conteúdo da revista, continuei à distância, porém abri o livro de forma que ela pudesse ver o conteúdo. Meu objetivo foi alcançado com relação a percepção, mas não com relação a emoção. Eu imaginava que ela iria se sentir grata por aquela visão, mas demonstrou irritação, como se eu quisesse me mostrar para ela só porque estava com uma revista nova. Falou com suas amigas de forma irritada e disse palavras irônicas para me atingirem. Não lembro que palavras foram, mas sei até hoje a marca que me deixou na alma, no coração.
O tempo passou e vim a conhecer o que era o amor romântico e principalmente o amor incondicional. Mas nunca mais voltei a sentir aquele mesmo sentimento por outra pessoa, fui adolescente, amadureci e agora estou descendo a montanha da vida. Meus cabelos se perderam nas estradas da vida e o pouco que restou ficaram pintados de neve.
Lembro que procurava sentir aquela sensação com tantas das mulheres que passaram na minha vida. Queria ver o que acontecia se determinada pessoa correspondesse aos meus sentimentos, acredito que seria uma experiência do paraíso. Mas cada pessoa que eu simpatizasse, que começasse a sentir a mesma sensação do passado, logo uma cortina de frieza me gelava a alma, o coração desacelerava, e o encanto se perdia. O que salvou minha vida, foi o conhecimento do amor incondicional. Ele me ensinou que o mais importante era a capacidade de amar sem condicionamentos, que se a pessoa amada me amasse em correspondência, ótimo! Mas se tal não acontecesse a minha vida seria digna, somente pela capacidade de amar ao próximo e a Natureza, que representa a figura de Deus sempre ao meu lado.
Mas, confesso, queria ter essa experiência de um amor correspondido, mas não podia me aproximar dos meus relacionamentos, pois uma força muito mais forte me impedia de aprofundar esse relacionamento. Foi então que eu passei a frequentar os cabarés, as boates, locais onde as mulheres se prostituíam para ganhar a vida. Como esse aprofundamento do relacionamento até a intimidade sexual fazia parte do trabalho delas, passei a frequentar pelo menos uma vez no mês esses ambientes. Queria aprender como chegar perto de uma mulher, aprofundar o relacionamento, trocar fluidos, ter a relação sexual. Mas não tive sucesso. Até hoje continuo virgem. Mas encontrei paz em minha consciência.
Sim, teve um momento que tudo indicava que eu iria ter sucesso e essa história não fica completa se eu não relatar esse momento. Eu passei a ser considerado nos diversos bordeis que frequentava como o “Bondoso”. Isso porque a garota que ficasse comigo naquele momento, tinha a oportunidade de falar um tanto da sua vida, receber bons conselhos, algumas vezes até encaminhamentos para algum emprego, eram recompensadas acima do esperado, mas não era realizado o ato sexual. A minha fama se espalhou e quando eu chegava a esses locais, logo as inquilinas ou frequentadoras do bordel se insinuavam para mim no sentido de serem eleitas companheiras para aquela noite. Sabiam que quem ficasse comigo, teria no dia seguinte uma vida até transformada, não tanto pelo generoso pagamento que recebiam como pela orientação ou mesmo um bilhete para se apresentarem em determinada empresa para um trabalho.
Foi numa noite destas que eu cheguei e procurei sentar numa mesa discreta, como sempre fazia. Fiquei a observar as diversas garotas à distância, elas sabiam que eu não gostava do exibicionismo sexual e sempre escolhia quem demonstrava ser a mais discreta também. Foi quando observei, através da luz negra da boate, aquela mulher linda, vestida de forma sóbria, sem muito glamour ao redor dela. Sua pele morena, seus olhos grandes, seu perfil aristocrático, logo enviou a minha memória ao passado e trouxe a imagem daquela menina que nunca saiu dos meus pensamentos. Não tinha nos lábios mais o sorriso enigmático, mas eu sabia que era ela. Meu coração acelerou como naquele dia, parece que o tempo não havia passado. Ela percebeu o meu olhar fixado nela, mesmo assim não fez nenhum gesto de sorriso, nem demonstrou me reconhecer. Eu percebia que estava travado, aquela cortina de gelo queria me envolver mais uma vez, mas agora eu já estava treinado com aquelas garotas e dei um sinal para ela se aproximar.
Seu caminhar continuava nobre, uma rainha num corpo de prostituta. Sentou a minha mesa de forma profissional, como se dissesse com seu silêncio que estava pronta para o serviço a ser solicitado. Perguntei o seu nome. Respondeu. Perguntei se queria beber alguma coisa. Uma soda limonada. Suas respostas eram breves, precisas, cirúrgicas, sem emoção. Sim, definitivamente, ela não me reconheceu. Ela certamente sabia que eu era uma pessoa excêntrica, e isso deve ter justificado na sua mente a minha postura tensa, com os meus olhos fugindo dos seus na maioria das vezes, de não tomar atitudes eróticas, de evitar até em tocá-la...
Eu sentia a dificuldade de comunicação, não sabia mais o que dizer além dessas primeiras perguntas iniciais. Não queria tocar no nosso passado, sabia que seria muito constrangedor para ela. Principalmente quando eu dissesse quem era eu, e o que ela fizera comigo e que me marcara para sempre. O silencio se tornava pesado naquela mesa. Foi ela que veio em meu auxílio, perguntou o meu nome. Respondi a verdade, sabia que ela não iria fazer conexão com aquele menino esquisito de sua sala de aula. Perguntou se eu gostaria de dividir com ela a soda limonada. Aceitei. Perguntou o que eu queria fazer. Conversar com você, respondi. Só isso? Mostrou pela primeira vez seu sorriso e descobri nele aquela mesma ironia de criança. Então converse... me provocou.
Jamais me senti tão perdido na vida. Não sabia o que dizer, o que pedir. Ela era a esfinge do enigma, pronta a me devorar. O coração sempre acelerado parecia querer fugir de dentro do peito. Por outro lado, eu sabia que ali estava a solução do meu problema. Se eu conseguisse agir com ela como uma prostituta, leva-la para o quarto e a possuir com a vitalidade de macho, estaria livre do feitiço que ela me colocara sem saber. Mas o meu afeto estava acima dos meus instintos. Acima da oportunidade de usá-la como um objeto sexual para exorcizar os meus demônios, estava o meu desejo de ajuda-la, como uma pessoa muito especial e que me ensinara, mesmo de forma torta, como era o sentimento do amor.
Não sei de onde veio tal intuição, certamente do meu anjo da guarda, vendo a minha aflição: de que forma posso lhe ajudar a realizar um sonho que você tenha? Perguntei. Ela parou, surpresa e refletindo... e você pode fazer isso? Quem sabe? Devolvi a pergunta. Mas agora ela é quem estava na berlinda, devia dizer ou não o que tanto desejava?
A música brega inundava o ambiente, naquele clima carregado de fumaça e pouco iluminado, com a luz negra que refletia em dois pontos de lágrimas que se formavam nos seus olhos Tu não pode me ajudar, disse com melancolia na voz. Perdi a pessoa que me ensinou a amar, mas que nunca ligou pra mim. Quando eu tive coragem e declarei o quanto eu o amava, ele me esnobou e debochou de mim junto com seus amigos. Fiquei com tanta vergonha, que nunca mais consegui encontrar aquela mesma forma de sentir com outra pessoa. Tentei me envolver com alguém sem esse afeto, mas ele me desonrou e me jogou contra meus pais, minha família, e minha comunidade. Sem profissão e sem outra chance de sobrevivência fui convidada a frequentar esses locais onde estou tentando fazer algo para viver com mais dignidade, mesmo que sem amor, pois acredito que jamais o alcançarei. Conto tudo isso pra você, pois já sei da sua fama e do quanto já ajudou as minhas colegas. Mesmo sabendo que o meu caso é mais complicado, pois além da questão profissional e financeira, que você pode ajudar, existe a emocional, onde você não pode fazer nada.
O relato dela teve o benefício de trazer paz ao meu tumulto emocional, descobri naquela pessoa como funciona o rigor da lei de causa e efeito: a ironia que ela teve com o meu sentimento por ela, ela sentiu a mesma ironia quando desenvolveu o mesmo sentimento por outra pessoa, mesmo que não tenha feito essa relação.
Confirmei com ela, sim eu iria ajuda-la. Conhecia um amigo que precisava de uma secretária com suas características. Disse que no dia seguinte iria falar com ele e nessa mesma semana daria o retorno para ela. Notei um brilho no seu olhar e mais ainda quando lhe disse: quanto ao lado emocional, talvez eu não seja tão eficiente em ajuda-la, mas sei da história de um rapaz que sofreu um problema parecido com o seu, mas que se sentiu muito aliviado quando percebeu o quanto nós sofremos por pequenas ações que marcam o nosso destino. Ele também não conseguia amar ninguém, foi traumatizado por alguém como você foi. Mas aprendeu a amar de forma incondicional, isto é, ficar feliz por amar ao próximo, mesmo que não seja amado por ele, mesmo que seja ironizado, humilhado.
Ela perguntou com olhar surpreso: isso é realmente possível? Sim, respondi, pode ter certeza disso, tenho visto muitas histórias para lhe garantir isso. Faça isso, procure amar dessa forma e você vai observar que a vida é muito maior do que seus medos e frustrações.
Saí daquela mesa com a sensação de que sofri uma grande transformação. De uma pessoa apagada, acuada, das primeiras palavras, parecia que eu dominava totalmente a situação, onde as minhas palavras tinham uma grande força filosófica, espiritual. Finalmente eu via naquele olhar e no sorriso que se desenhava no rosto essa mesma expressão que eu planejava receber quando criança. Mas, o que com aquele gibi tão colorido não consegui, a minha história recheada com a minha experiência de vida conseguiu. Nos despedimos com a sensação de que a própria vida nos transformou em companheiros de nossas próprias decepções, e que, finalmente, ali, um perto do outro, o feitiço perdeu sua força, estávamos livres.