Encontrei em Bertioga-SP, um morador de rua, descalço, corpo edemaciado (inchado), hálito alcoólico, mente deteriorada, dignidade humana perdida. Chega perto de mim perguntando se eu já havia passado fome na vida. Evitei a resposta e entrar no seu nível de argumentação. Sei que ele estava querendo ajuda em dinheiro, mesmo que colocasse como argumentação a fome. Era mais um dependente químico, alcoólico, com doença em franca atividade, sem saber a quem pedir ajuda para a real ajuda ao seu caso. Não sei se tem família por perto, se tem alguma história perdida em algum lugar. Sei que sou médico, que atuo na área da sua doença, a psiquiatria. Mas o que posso fazer? Dá uma moeda que ele pede para ir logo em seguida em busca de mais uma dose de cachaça para aliviar ou anestesiar os seus sofrimentos, mesmo que aprofunde ainda mais a doença? Ou, prevendo que isso possa acontecer e que eu não queira participar da evolução da sua doença, mas que queira lhe ajudar de alguma forma, dou um pequeno pacote de biscoitos que trazia comigo? Vejo a distância enquanto sigo o meu caminho, que ele permanece com o pacote de biscoito nas mãos, desinteressado, como se fosse mais um empecilho para ele conduzir. Qual foi o bem que eu fiz? Fiquei a imaginar...
Pessoas como essa existem aos milhares pelo Brasil afora, e nesse atual estágio político, da orientação do Ministério da Saúde que a doença mental não existe e que os hospitais psiquiátricos são antros de exclusão social, com redução massiva de leitos para internação, os doentes mentais passam a morar cada vez mais nas ruas, quando suas famílias não encontrando vagas para conter as crises de suas doenças terminam por abandoná-los à própria sorte, e muitos terminam a vida de forma precoce, num atropelamento, assassinato, fome, ou doenças físicas as mais diversas. Nós, psiquiatras, acusados como o vilão-mor dessa situação, terminamos por sermos hostilizados, sem sermos ouvidos e tendo nossas opiniões desconsideradas quando chegam à mesa de discussão. Terminamos por uma atitude mais passiva que ativa, de tentar entender, criticar, denunciar e apontar soluções reais para a situação. Isso que estou fazendo agora, mesmo com um texto de perfil denunciador de uma situação, mas sem consequências práticas de resolução do problema.
É nisso que devo focar minha atenção, após identificar o problema partir para a resolução. Como fazer para ajudar esses irmãos que estão nessa situação de abandono, que pertencem a área da psiquiatria enquanto doentes mentais? Notemos logo a terminologia que uso para identifica-los, “irmãos”, enquanto pelo jargão técnico eu deveria usar “pacientes”. Isso acontece porque, além da minha condição acadêmica e de tratar essas pessoas como pacientes, eu coloco acima dessa responsabilidade a minha obediência ao Pai que tudo criou e que espera de mim atitudes para que eu ajude os irmãos que se encontram em mais dificuldades. Não posso colocar no meio do caminho, como obstáculo, nenhum tipo de preconceitos, não posso julgar ou condenar quem quer que seja. Devo simplesmente reconhecer os erros que a ignorância produz e gera a falta de assistência, e lutar para corrigir o problema apontando com objetividade a solução pragmática a partir dos primeiros passos.
Qual seria esse primeiro passo na conjuntura atual? Trazer de imediato essas pessoas para dentro do Hospital, cuidar da sua dependência tratando de início a intoxicação, seguida da recuperação dos diversos órgãos e conscientização da pessoa como filha de Deus, que tem direito a uma dignidade humana, a uma vida com qualidade.
Penso que, para essa ideia alcançar o nível gerencial da saúde com força para gerar projetos no sentido dessa ajuda real que se mostra necessário, seja preciso uma atividade de reflexão, como um seminário organizado pela Universidade e com a parceria com a Justiça, com a Psiquiatria e com os gerentes do serviço público ligados à Saúde e Serviço Social.
Irei fazer o arcabouço desse projeto para apresentar a Universidade. Para tanto irei convidar pessoas da Justiça, da Saúde e da Gerência para ver como pode ser a montagem de um seminário nesse sentido.