Achei melhor substituir o trecho da entrevista com o Dr. Valentim Gentil Filho, como anunciei no texto anterior, pela entrevista completa feita em 04-11-2013 na Rede Viva, com 10.687 visualizações.
- (Moderador) Boa noite! Está começando mais um programa transmitido ao vivo pela TV Cultura, TV Brasil, Emissoras Afiliadas e pelo Portal UOL. Nossos entrevistadores convidados de hoje, são: Fernanda Bacetti, repórter de saúde do Jornal Estado de São Paulo; Luciana Sadi, psicanalista, escritora e blogueira da Folha de São Paulo; Aureliano Biancareli, jornalista da área de saúde; Dr. Paulo Saudiva, professor titular da Faculdade de Medicina da USP; e Ulisses Caposoli, editor chefe da Revista Scientific American Brasil. Teremos também os twiteiros convidados e nosso cartunista Paulo Caruso. Dr. Valentim Gentil, muito obrigado, em primeiro lugar, pela aceitação do convite, por estar aqui entre nós. O Sr. Costuma se referir ao cérebro humano como o ápice da perfeição. Eu pergunto, primeiro, por que o senhor diz isso, e segundo, por que uma máquina tão perfeita está sujeita a tantas e tão sérias avarias?
- (Valentim) Primeiro, é um grande prazer está aqui de novo. Eu acredito que seja o ápice da perfeição porque em torno da estruturação da matéria nós não conhecemos nada mais sofisticado, são 100 bilhões de células, cada uma delas podendo estabelecer mil conexões com outras células, usando uma infinidade de substâncias químicas, e cada vez que essas substâncias químicas chegam até os receptores provocam o que hoje a gente já sabe que é uma cadeia de outras reações químicas, que acabam transformando inclusive a composição do neurônio que recebeu essa informação. Tudo isso numa velocidade fantástica. Existem cérebros sofisticados em outras espécies, mas o nosso de fato atingiu o máximo que a gente conhece de processamento de informações. Não conseguimos hoje simular muito mais do que um milímetro cúbico de matéria cinzenta nos nossos supercomputadores. E uma estrutura tão sofisticada, com tantas conexões, com tantos sistemas funcionando na velocidade que funciona, ao longo hoje de mais de 80 anos de vida, inevitavelmente está sujeito a intempéries e avarias. O mais surpreendente para mim é a capacidade de resiliência que esses órgãos têm, tanto os humanos como os outros, porque nós nos submetemos a todo tipo de agressão ao longo da vida, desde os nossos hábitos alimentares até nossas condições de vida estressante. Apesar disso nós continuamos operacionais. Então eu acho que isso, de fato, se fosse uma máquina de fato, ela não resistiria muito.
- (M) Perfeito! Vou começar por um dos distúrbios antes de passar a bola para os entrevistadores. Começando pelo bê-á-bá mesmo pois muitos dos nossos telespectadores são leigos no assunto. Quais são os sintomas que caracterizam a depressão?
- (V) Depressão é um nome que nós damos para uma síndrome, na verdade. É um nome emprestado de Geografia, um nome emprestado de outras ciências que a medicina assumiu, mas que na verdade representa um conjunto de síndromes. Deixe eu falar de várias formas de depressão. Quinze, dezesseis, depende da nossa vontade classificatória. Nós psiquiatras temos esse hábito de classificar coisas para facilitar a comunicação e as vezes nos atrapalhamos com isso. Mas existe uma forma de depressão, uma síndrome depressiva, conhecida desde a mais remota antiguidade que é muito consistente. E aí a tristeza é somente uma dessas manifestações. Basicamente o que acontece em depressão é uma alteração do organismo, uma alteração sistêmica de ineficiência de processamento. E aí, o processamento de nossas funções vitais fica prejudicado, nosso apetite fica prejudicado, o sono fica prejudicado, a capacidade de concentração fica prejudicada, a nossa capacidade de tomar decisões fica prejudicada, nossa sensação de bem-estar, de alegria, de ter prazer nas coisas fica prejudicada, então, é sempre um conjunto de sintomas, e aí existem variantes nessas várias síndromes. Umas que pioram sistematicamente de manhã, outras pioram sistematicamente à noite, tem algumas que as pessoas emagrecem muito, outras que as pessoas engordam, outras as pessoas perdem o sono as 4 horas da manhã, outras as pessoas dormem até as 2 horas da tarde... Existem variações, e o que existe me comum é que todas elas causam sofrimento e causam prejuízos, uma das principais causas de incapacitação da humanidade.
- (Entrevistador) Eu queria saber como é que surgiu seu interesse por psicofarmacologia e pela psiquiatria.
- (V) Começou no interesse pela psiquiatria. Isso ainda antes de eu entrar para a Faculdade de Medicina, eu fui estudar medicina para ser psiquiatra. Eu estava nos anos 60, e estava fascinado com várias coisas que eu estava vendo ao meu redor. Mas quando eu tento identificar o meu primeiro interesse eu acho que era na verdade um jovem que eu conhecia, meu vizinho, que tinha um problema grave, que eu imagino fosse uma forma de esquizofrenia, quando a gente era muito jovem. Esse foi meu primeiro contato com alguém com doença mental. Depois quando eu estava na escolha de profissão, ainda sem saber se eu queria ser médico ou não, dentro da medicina, a área de psicologia, psiquiatria me interessava mais que o restante da medicina. A psicofarmacologia veio depois já da graduação pelo terceiro, quarto ano quando começaram a aparecer os principais estudos sobre o mecanismo de ação dos psicofármacos. E isso parecia para mim um instrumento interessante de entender ações mente-corpo. E acabei sendo professor de psicofarmacologia ou assistente de farmacologia durante 15 anos, mas o interesse era basicamente era usar os efeitos desses medicamentos para procurar entender a relação mente-corpo. E até hoje eu não entendo, e até hoje eu me surpreendo, e até hoje eu acho fascinante que de repente você mudando doses ou mudando medicamentos você tem uma mudança tão grande na resposta emocional ou você consegue reverter quadros que... é tão esquisito, você de repente aumenta uma quantidade do medicamento e a pessoa que está numa forte depressão ou noutro quadro igualmente perturbador, de repente ficam melhor. Isso continua sendo fascinante.
- (E) Professor, o senhor usou a imagem do cérebro como uma máquina e eu vou tomar a liberdade de chama-lo de mecânico. No Brasil pelos números da OMS nós somos 23 milhões de pessoas que sofrem de algum tipo de transtorno mental. Cinco milhões delas precisariam de alguma ajuda. Segundo o Conselho Regional de Medicina, são 7 mil e seiscentos especialistas em psiquiatria. O senhor não se sente impotente diante de tantas máquinas para serem “consertadas”?
- (V) Eu não conheço máquinas tão sofisticadas, mas, de qualquer forma, vamos ficar com a máquina. Ferrari pra cima, tá bom? Então a gente fica um pouco de mecânico. O número que eu tenho, é mais ou menos 9 mil pessoas que trabalham na área de psiquiatria e transtornos mentais, nos quais 5 ou 7 mil são psiquiatras. Alguns são especialistas, a maioria são afiliados a Associação Brasileira de Psiquiatria, que acabou de fazer um Congresso que tinha 5 mil participantes. Se eu tomar nossos dados epidemiológicos na cidade de São Paulo como parâmetro, que acho que são mais confiáveis que os da OMS, 30% da população um dia vai ter um transtorno que nós psiquiatras somos capazes de diagnosticar e catalogar. Então, na megacity de São Paulo, um estudo feito metodologicamente adequado, encontrou esse tipo de prevalência. Isso é uma prevalência ao longo da vida. Se a gente pegar o último ano, isso cai para a bagatela de 17%, que é um número enorme de pessoas. Só um terço dos quadros graves recebeu algum tratamento no último ano. São dados da professora Laura Andrade e colaboradores, publicados em 2012. Então, de fato nós temos uma situação de desassistência fenomenal.
A maior parte dos quadros, felizmente, não é muito grave. Mas, quando a gente pega as pessoas que estão sofrendo bastante depressão, transtorno obsessivo compulsivo, várias psicoses, transtorno bipolar, algumas formas de neurose grave, eu me sinto realmente numa situação equivalente de um cardiologista que soubesse que muita gente tem infarto, hipertensão, angina, insuficiência cardíaca e não está recebendo atendimento. De tudo isso, o que mais me incomoda, é saber que tem mais de 15 mil pessoas morando nas ruas de São Paulo, e que pelo menos 1500 delas tem uma psicose grave, da família das esquizofrenias, e que tem mais de 55 mil moradores de rua no Brasil, segundo um levantamento mais ou menos recente. Se 10% dessa população tiver os quadros mais graves como esquizofrenia, são 5 mil pessoas sem atendimento. Então, nós estamos numa situação de desassistência fenomenal. Agora, junte a isso o número de pessoas que está recebendo atendimento inadequado, junte a isso as pessoas que não estão nas ruas, mas estão em casa, e algumas delas que estão inclusive fechadas em alguns ambientes que o Ministério Público de vez em quando é chamado para ver essa situação de cárcere privado. E as manifestações que eu tenho visto recentemente do Ministério Público são muito humanitárias, quer dizer, eu vou processar essa família que isolou essa pessoa, como se fosse um cárcere privado, eu vou responsabilizar as autoridades por não dar o atendimento que precisa, o que é que eu vou fazer? A Justiça hoje está com dificuldade de lidar com essa situação. Esse é um fenômeno mundial. Quando a gente fala da realidade, da megacity São Paulo, ela corresponde o que ocorre em países ainda não desenvolvidos. Um terço da população, só, recebe atendimento.