Quinto Varro, o nobre patrício romano, que tentava viver as lições do cristianismo, descobre que a sua esposa está lhe traindo com seu patrão, a quem tinha como amigo e dedicava toda estima. Fica desesperado com essa descoberta, principalmente por não saber o que fazer com o seu filho pequeno, por não possuir posses suficientes para a sua manutenção e educação. Procurou o aconselhamento de Corvino, um velho gaulês que fazia palestras nas catacumbas sobre o cristianismo e estava hospedado na casa de um amigo. As palavras experientes do gaulês, burilado nas dores do próprio sofrimento, são importantes instruções para nós que pretendemos também seguir as lições do Cristo.
- Varro, aceitaste o Evangelho para que Jesus se transforme em teu servidor ou para que te convertas em servidor de Jesus?
- Oh! Sem dúvida – suspirou o rapaz -, se alguma coisa aspiro no mundo é ao ingresso nas fileiras dos escravos do Senhor.
- Então meu filho, cogitemos dos desígnios do Cristo e olvidemos nossos desejos.
E, fitando o céu pela janela humilde, deixando perceber que solicitava a inspiração do Alto, acrescentou:
- Antes de tudo, não condenes tua mulher. Quem somos nós para sondar o coração do próximo? Poderíamos, acaso, torcer o sentimento de outra alma, usando a maldade e a violência? Quem de nós estará irrepreensível para castigar?
- Todavia, como extinguir o mal, se não nos dispomos a combate-lo? – ajuizou Varro, gravemente.
O ancião sorriu e considerou:
- Acreditas, porém, que possamos vencê-lo à força de palavras bem feitas? Admites, porventura, que o Mestre haja descido das Alturas, simplesmente para falar? Jesus viveu as próprias lições, guerreando a sombra com a luz que irradiava de si mesmo, até o derradeiro sacrifício. Achamo-nos em um mundo envolvido em trevas e não possuímos outras tochas para clareá-lo, senão a nossa alma, que precisamos inflamar no verdadeiro amor. O Evangelho não é somente uma propaganda de ideias libertadoras. Acima de tudo, é a construção de um mundo novo pela edificação moral do novo homem. Até agora a civilização tem mantido a mulher, nossa mãe e nossa irmã, no nível de mercadoria vulgar. Durante milênios, dela fizemos nossa escrava, vendendo-a, explorando-a, apedrejando-a ou matando-a, sem que as leis nos considerem passíveis de julgamento. No entanto, não será ela igualmente um ser humano? Viverá indene de fraquezas iguais às nossas? Por que conferir-lhe tratamento inferior àquele que dispensamos aos cavalos, se dela recebemos a bênção da vida? Em todas as fases do apostolado divino, Jesus dignificou-a, santificando-lhe a missão sublime. Recordando-lhe o ensinamento, será lícito repetir – quem de nós, em sã consciência, pode atirar a primeira pedra.
E, fixando significativamente o ouvinte, acentuou:
- O cristianismo para redimir as criaturas, exige uma vanguarda de espíritos decididos a executar-lhe o plano de ação.
- No entanto – ponderou o jovem romano, algo tímido -, poderemos negar que Cíntia esteja em erro?
- Meu filho, quem ateia fogo ao campo da própria vida, decerto seguirá pelas chamas do incêndio. Compadece-te dos transviados! Não serão suficientemente infelizes por si mesmos?
- E meu filho? – perguntou Varro com a voz embargada de pranto.
- Compreendo-te a aflição.
E vagueando o olhar lúcido pela sala estreita, Corvino pareceu mostrar um fragmento do próprio coração, acrescentando:
- Em outro tempo, bebi no mesmo cálice. Afastar-me dos filhinhos foi para mim a visitação de terrível angústia. Peregrinei dilacerado, como folha relegada ao remoinho do vento, mas acabei percebendo que os filhos são de Deus, antes de pousarem suavemente em nossas mãos. Entendo-te o infortúnio. Morrer mil vezes, sob qualquer gênero de tortura, é padecimento menor que esse da separação de uma flor viva que desejaríamos reter ao tronco do nosso destino...
- Entretanto – comentou o patrício amargurado -, não seria justo defender um inocente, reclamando para nós o direito de protege-lo e educa-lo?
- Quem te ouviria, contudo, a voz, quando uma insignificante ordem imperial poderá sufocar-te os gritos? E além do mais – aduziu o ancião, afetuosamente -, se estamos interessados em servir ao Cristo, como impor a outrem o fel que a luta nos constrange a sorver? A esposa poderá não ter sido generosa para com o teu coração, mas provavelmente será abnegada mãe do pequenino. Não será, pois, mais aconselhável aguardar as determinações do Altíssimo, na graça do tempo?
Detendo-se na dolorosa expressão fisionômica do pai desventurado, Corvino observou, depois de longa pausa:
- Não te submetas ao frio do desengano, anulando os próprios recursos. a dor pode ser comparada a volumosa corrente de um rio, suscetível de conduzir-nos à felicidade na terra firme, ou de afogar-nos, quando não sabemos sobrenadar. Ouve-nos. O Evangelho não é apenas um trilho de acesso ao júbilo celestial, depois da morte. É uma luz para a nossa existência neste mundo mesmo, que devemos transformar em Reino de Deus. Não te recordas da visita de Nicodemos ao divino Mestre, quando o Senhor asseverou convincentemente: “importa renascer de novo”?
Ante o sinal afirmativo de Quinto Varro, o ancião continuou:
- Também sofri muito, quando, ainda jovem, me decidi ao trabalho da fé. Repudiado por todos, fui compelido a distanciar-me das Gálias, onde nasci, demorando-me por dez anos consecutivos em Alexandria, onde renovei meus conhecimentos. A igreja de lá permanece aberta às mais amplas considerações, em torno do destino e do ser. As ideias de Pitágoras são ali mantidas em um grande centro de estudos, com real proveito, e, depois de ouvir atenciosamente padres ilustres e adeptos mais esclarecidos, convenci-me de que renascemos muitas vezes na Terra. O corpo é passageira vestidura de nossa alma que nunca morre. O túmulo é ressurreição. Tornaremos à carne, tantas vezes quantas se fizerem necessárias, até que tenhamos alijado todas as impurezas do íntimo, como o metal nobre que tolera o cadinho purificador, até que arroje para longe dele a escória que o desfigura.
Corvino fez ligeiro intervalo, como a dar oportunidade a reflexão do ouvinte, e prosseguiu:
- Jesus não falava simplesmente ao homem que passa, mas, acima de tudo, ao espírito imperecível. Em certo passo dos seus sublimes ensinamentos, adverte: “melhor entrares na vida aleijado que, tendo duas mãos, te aproveitares delas para a descida às regiões inferiores”. Refere-se o Cristo ao mundo, como escola onde procuramos nosso próprio burilamento. Cada qual de nós vem à Terra, com os problemas de que necessita. A provação é remédio salutar. A dificuldade é degrau na grande subida. Nossos antepassados, os druidas, ensinavam que nos achamos num mundo de viagens ou em um campo de reiteradas expe4riências, a fim de que possamos alcançar, mais tarde, os astros da luz divina para sermos um com Deus, nosso Pai. Criamos o sofrimento, desacatando as leis universais e suportamo-lo para regressar a harmoniosa comunhão com elas. A Justiça é perfeita. Ninguém chora sem necessidade. A pedra suporta a pressão do instrumento que a desgasta, a fim de brilhar soberana. A fera é conduzida à prisão para domesticar-se. O homem luta e padece para aprender a reaprender, aperfeiçoando-se cada vez mais. A Terra não é o único teatro da vida. Não disse o próprio Senhor – a quem pretendemos servir – que “existem muitas moradas na Casa de nosso Pai”? O trabalho é a escada luminosa para outras esferas, onde nos reencontraremos, como pássaros que, depois de se perderem uns dos outros, sob as rajadas do inverno, se reagrupam de novo ao Sol abençoado da primavera...
Passando a mão pelos cabelos brancos, o velho acentuou:
- Tenho a cabeça tocada pela neve do desencanto... Muitas vezes, a agonia me visitou a alma cheia de sonhos... Em torno dos meus pés, a terra fria me solicita o corpo alquebrado, mas dentro do meu coração a esperança é um sol que me abrasa, revelando em suas projeções resplendentes o glorioso caminho do futuro... Somos eternos, Varro! Amanhã, reunir-nos-emos, felizes, no lar da eternidade, sem o pranto da separação ou da morte...
Ouvindo aquelas palavras, repletas de convicção e de ternura, o moço patrício aquietou o espírito atormentado.
Importante esse diálogo, principalmente na imagem que somos a Tocha do Amor, o corpo é a estrutura material embebido na essência do Amor e que gera a luz ao nos consumirmos em benefício do próximo.