Para tentar entender ainda mais sobre a aceitação da Reencarnação por alguns setores da Igreja Católica nos primeiros séculos, cuja autoria é colocada sobre os estudos de Orígenes, considerado o Pai da Teologia, fui encaminhado para um artigo escrito por D. Estêvão Bettencourt OSB, o qual transcrevo abaixo.
Orígenes (185 – 254) foi mestre da famosa Escola de Teologia em Alexandria (Egito) no séc. III. Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar no dados do Evangelho mediante o instrumento da filosofia ou da sabedoria humana (grega) anterior a Cristo. A teologia ainda estava em seus primórdios; as fórmulas oficiais da fé da Igreja eram muito concisas; em consequência, ficava margem assaz ampla para que o estudioso propusesse sentenças destinadas a elucidar, na medida do possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a essa tarefa, servindo-se da filosofia do seu tempo e, em particular, da filosofia platônica. Ao realizar isso, Orígenes fazia questão de distinguir explicitamente entre proposições de fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação Cristã, e proposições hipotéticas, que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões; além disto, professava submissão ao magistério da Igreja caso esta rejeitasse alguma das teses dele, Orígenes.
Ora, entre as suas proposições pessoais, Orígenes formulou algumas que de fato vieram a ser recusadas pelo magistério da Igreja.
Assim, inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega psyché (alma) de psychos (frio), e admitia que as almas humanas unidas à matéria, tais como elas atualmente se acham, são o produto de um resfriamento do fervor de espíritos que Deus criou todos iguais e destinados a viver fora do corpo; a encarnação das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um abuso de liberdade ou um pecado dos espíritos primordiais, que Deus terá punido, ligando tais espíritos à matéria. Banidos do céu e encarcerados no corpo, estes sofrem aqui a justa sanção e se vão purificando a fim de voltar a Deus; após a vida presente, alguns ainda precisarão de ser purificados pelo fogo em sua existência póstuma, mas na etapa final da história todos serão salvos e recuperarão o seu lugar junto de Deus; o mundo visível terá então preenchido o seu papel e será aniquilado.
Note-se bem: Orígenes propunha essas ideias como hipóteses, e hipóteses sobre as quais a Igreja não se tinha pronunciado (justamente porque pronunciamentos sobre tais assuntos ainda não haviam sido necessários). Não havia, pois, da parte de Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim de constituir uma escola teológica própria ou uma heresia (obstinação consciente contra o magistério da Igreja).
A desgraça de Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores... Estes atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o magistério da Igreja as declarou contrárias aos ensinamentos da fé.
É preciso observar ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como possível a preexistência das almas humanas. Ora, esta doutrina não significa necessariamente reencarnação; apenas quer dizer que, antes de se unir ao corpo, a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não se segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria reencarnação propriamente dita).
Aliás, Orígenes se pronunciou diretamente contrário à doutrina da reencarnação... Com efeito, em certa passagem de suas obras considera a teoria do filósofo Basílides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de São Paulo: “Vivi outrora sem lei...” (Rm 7,9). Observa então Orígenes: Basílides não percebeu que a palavra “outrora” não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas apenas a um período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava vivendo; assim, concluía Orígenes: “Basílides rebaixou a doutrina do Apóstolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias” (cf In Rom VIII).
Contudo, os discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o mestre não chegou de modo algum a propor, nem como hipótese). Os principais defensores destas ideias, os chamados “origenistas”, foram monges que viveram no Egito, na Palestina e na Síria nos séc. IV/VI. Esses monges, como se compreende, levando vida muito retirada, entregue ao trabalho manual e à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia; admiravam Orígenes principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em que o mestre mostrou realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir entre proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas professavam cegamente como dogma tudo que liam nos escritos de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e buliçosos quanto mais simples e ignorantes.
A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como contrária à fé. Um dos testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza (? – 518), autor do “Diálogo sobre a imortalidade da alma e a ressurreição”, em que se lê o seguinte raciocínio: “Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infligir a punição, repito-lhe várias vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, que estipula... os mesmos castigos, não haveria de esclarecer os culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o réu e leva-lo à demência. Uma tal vítima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem ter consciência de haver cometido uma falta?” (ed. Migne gr., t. LXXXV, 871).
Sem nos demorar sobre este e outros testemunhos contrários à reencarnação no séc. VI, passamos imediatamente à fase culminante da controvérsia origenistas.
“Não” à reencarnação.
No início do séc. VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da Palestina, tendo como principal centro de propagação o mosteiro da “Nova Laura” ao sul de Belém. Aí se falava, com estima, de preexistência das almas, reencarnação, restauração de todas as criaturas na ordem inicial ou na bem-aventurança celeste... em 531, o abade São Sabas, que, com seus 92 anos de idade, se opunha energicamente ao origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador da Palestina devastada pelos samaritanos, assim como a expulsão dos monges origenistas. Contudo, alguns dos monges que o acompanhavam, sustentaram em Constantinopla opiniões origenistas; regressou à Palestina, para aí morrer aos 5 de dezembro de 532. Após a morte de São Sabas, a propaganda origenistas recrudesceu, invadindo até mesmo o mosteiro do falecido abade (a “Grande Laura”); em consequência, o novo abade, Gelásio, expulsou do mosteiro quarenta monges. Estes, unidos aos da “Nova Laura”, não hesitaram em tentar tomar de assalto a “Grande Laura”. Por essa época, os origenistas (pelo fato de combater uma famosa heresia cristológica, dita “monofisitismo”) gozavam de grande prestígio, mesmo em Constantinopla. Com o passar do tempo, a controvérsia entre os monges da Palestina foi-se tornando cada vez mais acesa, exigindo em breve a intervenção das autoridades. Foi o que se deu em 539. O Patriarca de Jerusalém mandou pedir ao Imperador Justiniano de Constantinopla o seu pronunciamento contra o origenismo (naquela época os temas teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões de administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um trato contra Orígenes, de tom extremamente violento, que se encerrava com uma série de dez anátemas contra Orígenes, dos quais merecem atenção os seguintes:
Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menas de Constantinopla, a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos abades de mosteiros próximos igual pronunciamento. Assim intimado, Menos reuniu logo o chamado “Sínodo Permanente” (Conselho Episcopal) de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto:
O Papa Virgílio e os demais patriarcas deram a sua aprovação a esses artigos. Como se vê, tal condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla reunido em 543, e não pelo Concílio ecumênico de Constantinopla II, o qual só se realizou em 553. Neste Concílio ecumênico, a questão da pré-existência e da sorte póstuma das almas humanas não voltou à baila; verdade é que Orígenes aí foi condenado juntamente com outros escritores cristãos por causa de erros concernentes a Cristo.
Em conclusão, observamos o seguinte:
Podemos observar que o autor considerou a rusga existente entre os monges que seguiram os ensinamentos de Orígenes e chegaram a aplica-los com mais veemência que o autor. Nada foi dito sobre as motivações do Imperador Justiniano que promoveu o Concílio, nem da sua Imperatriz, Teodora, que dividia com ele o poder e tinha, aparentemente, bem mais influência no meio popular. Mas fica a compreensão que a Reencarnação foi um pensamento aceito, talvez não por todo o clero católico, mas por expressiva massa de agentes religiosos e que estavam perto do poder temporal.